sexta-feira, 29 de julho de 2011

Livro 3 - Capítulo 5

Janaína cuidava de Marcos com carinho e cuidado. Admirei aquela moça jovem que se dedicava ao velhinho enquanto o mundo caía lá fora. Gostava de exemplos de altruísmo, eles me alimentavam de esperança em uma humanidade melhor.

No passado eu havia conhecido Arinéia, uma senhora que era enfermeira. Era membra da igreja que eu dirigia no interior de São Paulo, quando ainda era mais jovem, antes dos meus trinta. Néia, como a gente a chamava, era dedicada e empenhada como nenhuma outra enfermeira que eu havia encontrado até então. Janaína, no entanto, era ainda mais dedicada. No meio do caos que se estabelecera no mundo, ela havia preferido estar ao lado daquele homem moribundo, que exigia seus cuidados.

_ Como vocês vieram parar aqui?

_ Eu estava transportando o seu Marcos para casa. Ele havia acabado de sair da UTI do hospital após uma operação. Estava começando a recuperação. Estávamos eu e o motorista da ambulância nos bancos da frente quando o trânsito da avenida parou. Nós não sabíamos o que estava acontecendo, então esperamos. De repente, vejo que algumas pessoas estão andando e pulando para dentro dos carros, ou puxando os motoristas e passageiros para fora. A primeira coisa que pensei é que eram trombadinhas, afinal, nessa parte em que o Retão e Manaíra encontra a BR-230, a coisa mais comum é um bando de trombadinhas, né?

_ Então, o Luís tentou dar ré, mas já tinha outro carro logo atrás. Peguei minha bolsa, guardei todas as coisas dentro dela e fui para a parte de trás da ambulância, junto com o seu Marcos, que estava dormindo. Eu não imaginava que eram zumbis até ver de perto, quando um deles estourou o vidro do carro e puxou o Luís para fora, mordendo seu pescoço quando ele foi para o chão. Pensei em gritar, mas quando vi o que estava acontecendo, tudo o que fiz foi fechar a via de acesso do banco da frente e ficar quieta, esperando a carnificina acabar. Fiquei ali por volta de duas horas e meia, chorando baixinho enquanto o mundo acabava lá fora.

_ Quando notei que tudo estava quieto, abri o postigo que dava para a rua para ver como estava tudo lá fora. Nenhum zumbi à minha volta. A primeira coisa que pensei, sendo honesta, foi em fugir para longe, mas minha obrigação de cuidar do seu Marcos falou mais alto e eu não consegui abandona-lo. Então, quando vi o shopping do lado, pensei em correr para lá. Lembrei que é um lugar seguro e talvez encontrasse alguém que pudesse me ajudar a carregar seu Marcos para fora. Encontrei o Claudemir aqui, que me ajudou com a maca e os utensilhos para manter a vida do seu Marcos. Ele está em coma e eu me sinto responsável por mante-lo vivo. Ainda bem que os equipamentos da ambulância eram de última geração.

Ela falava isso enquanto cuidava do homem, massageando seus braços e pernas. Notei que Claudemir lançava um olhar terno para a enfermeira enquanto conversávamos. Seu interesse ia além do cuidado da saúde. Vi que Claudemir realmente se interessara por Janaína, e parecia recíproco.

Mesmo em momentos de desespero o homem encontra tempo para o amor. Afinal, não foi para isso que fomos feitos? Amar e ser amados? Qual outro propósito pode haver em nossas vidas? Neste mundo de desmortos e destruição, nosso maior propósito é sobreviver, no entanto, esta sobrevivência não tem sentido sem que o amor aconteça, afinal, para que viver senão para encontrar alguém com quem valha a pena viver? Eu tinha Lenora. Depois, encontrei Renata. Agora, tenho quinze zumbis à minha volta, ainda me olhando. Não acho que eles me amem. Na verdade, não acho que zumbis amem qualquer coisa que não seja um cérebro quente, ainda vivo, de preferência. Estes querem o meu.

Mas, como tenho o direito à licença poética de determinar o tempo correndo dentro de minha mente, ainda tenho histórias para contar desde ano e meio de mundo perdido que encarei. Depois de sair daquele shopping ainda corremos por tantos cantos, ainda procuramos tantas coisas. Tudo o que aconteceu até este momento, até o shopping, não havia passado nem sequer dois meses desde o início da crise.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Livro 3 - Capítulo 4

A melhor decisão que tomei foi me esconder dentro da cidade. Tentar sair era quase suicídio. Com as rotas fechadas por engarrafamentos gigantescos, os únicos caminhos disponíveis eram as vias vicinais. Caminhos de má qualidade, em que se avança devagar, geralmente levando a lugar nenhum.

Pensava nisso diante do mapa da cidade, exposto em uma das paredes do shopping. Verônica chegou-se ao meu lado e olhou para o quadro.

_ Pensando em como sair desse lugar?

Olhei para o quadro. Era impossível sair da cidade.

_ Tentar sair daqui é impossível. Olha as saídas de João Pessoa. Todas levam a cidades satélites ou à BR-230. Não há via de escape, a não ser o mar. E o que pode estar nos esperando do outro lado? Não há como saber.

Continuei mostrando as estradas.

_ Veja só. Nestas estradas teremos grandes problemas para rodar. Eu vi as câmeras da prefeitura. Todas as vias estão cheias de carros parados, tanto em um sentido quanto no outro. Não há como escapar pelos próximos quarenta quilômetros, pelo menos. No interior do estado, onde há menos gente, com certeza teremos lugares que estarão com menos zumbis, mas quais as condições que nos esperam? A melhor opção é ficar em João Pessoa pelos próximos meses.

_ A cidade foi evacuada rapidamente quando a praga começou. Muita gente tentou fugir pelas estradas. Muitos se transformaram em zumbis e começaram a comer os outros. Foi uma reação em cadeia, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Onde você estava quando isso começou?

_ Dormindo.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Livro 3 - Capítulo 3

Claudemir sentou-se ao meu lado, pôs a mão em volta do meu ombro e ficou em silêncio, me ouvindo chorar enquanto eu digeria tudo aquilo. Mais indigesto que o péssimo sanduíche que Janaína fizera, a verdade estava travada em minha garganta e eu a estava despejando de dentro de mim. Olhei para todos eles com desolação e sentimento de culpa.

_ Desculpem. Eu é que deveria estar consolando vocês. Afinal, o pastor sou eu, não é verdade?

_ Pastor, todos nós passamos por coisas demais nesses dias. Imagino que você tenha visto coisas que nunca viu antes e teve que fazer coisas que considera censuráveis, disse Claudemir.

_ Os tempos são outros, Pastor. Situações extremas exigem de nós medidas extremas, replicou Alberto.

Concordei com a cabeça, ainda que não concordasse muito com aquilo. No fundo, a frieza era apenas uma máscara para esconder toda a dor que eu estava sentindo, e naquele momento eu sentia a necessidade de colocar toda esta dor, este medo e esta insegurança para fora, mas me satisfiz tirando a dor. Não podia permitir que eles soubessem o quanto eu temia aquele mundo inóspito que estava me esperando lá fora.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Livro 3 - Capítulo 2

Chorei.

Pela primeira vez, desde o início de tudo isso, chorei. Chorei por não me sentir no direito de sobreviver enquanto eles haviam morrido. Chorei por causa de toda a frieza com que me conduzi durante os últimos dias. Chorei por não ter me dado o direito de chorar, de sequer pensar no que estava acontecendo com o mundo.

Chorei por achar algo tão comum como comer com outras pessoas algo extraordinário e lembrei de quantos almoços e jantares me neguei a ter com minha mulher por estar trabalhando. Pensei em quantos momentos bons deixei de viver ao lado dela em detrimento das minhas “obrigações eclesiásticas”. Lembrei de cada briga e discussão resultante de minha ausência. Lembrei de tudo isso e chorei diante daquelas pessoas que ficaram em silêncio consternado e respeitoso diante de um pastor.

Cobri o rosto com as mãos. Não queria ser visto chorando. Não queria ser notado. Eu podia aceitar continuar vivendo em um mundo sem Lenora, desde que este mundo fosse algo sem perspectivas, triste. No entanto, não era justo com ela que eu estivesse aqui enquanto ela estava morta enterrada ao lado de nosso filho, que não aprendeu a jogar futebol, empinar pipa ou paquerar meninas. Chorei por ele também. Augusto não poderia descobrir um mundo de coisas que aquelas pessoas poderiam proporcionar para quem amavam. Pobre Augusto. A vida lhe fôra tirada pela própria mãe e exterminada por mim mesmo.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Livro 3 - Capítulo 1

Sentado, cercado de pessoas comuns, quase sentia algo leve no coração, algo parecido com felicidade, algo que eu não sentia há muito tempo. Coisas simples como o partir do pão, o sorriso do próximo, um olhar, que não o meu no espelho, tudo isso parecia emprestar certo nível de normalidade àquela bestialidade toda que havia tornado nosso mundo em algo morto. Um mundo perdido, sem expectativas de mudança, sem esperanças.

No entanto estava ali, diante de mim, no olhar daquelas pessoas, a esperança de um mundo melhor, uma esperança de reconstrução, de reerguer a sociedade. Um grupo de dez sobreviventes que poderiam recuperar a cidade de João Pessoa, faze-la voltar ao seu normal, receber novos sobreviventes. Eu poderia me dar o direito da esperança. Eu poderia me dar a chance da felicidade. A felicidade sem Lenora e sem Augusto.

Não me sentia no direito de ser feliz após ter feito o que fiz. Enquanto tentava morder o sanduíche, lembrei que meu filho nunca saberia qual é o sabor disso, e que minha esposa não reclamaria comigo por causa do colesterol. Lembrei que os dois tinham ido, deixado de existir. Lembrei que eu os havia matado.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 17

Todas as respostas estavam ali na própria praça. Quando cheguei no local deparei-me com cerca de dez sobreviventes que comiam cheese burgeres do McDonalds sentados calmamente. Quando me viram com um revólver na mão, a primeira reação foi a de auto-defesa. Um deles apontou uma pistola na minha direção.

_Larga a arma senão eu atiro.

_ Calma. Eu estou sozinho, não tem ninguém comigo. Vou guardar a arma e a gente conversa, ok?

_ Pastor Ernesto?

Olhei para o lado e reconheci Lucio, um jovem membro da igreja que veio me abraçar assim que me viu.

_ Nunca pensei que te veria de novo, pastor.

_ Nem eu, Lúcio... nem eu.

O homem que havia apontado a pistola para mim agora guardava a arma no coldre e vinha em minha direção com um sorriso no rosto.

_ Seja bem vindo, pastor. Este é o nosso pequeno bunker de sobrevivência.

Olhei em volta e havia nove pessoas. O líder, aquele homem que viera me cumprimentar, era Claudemir, um dos seguranças do shopping, o único armado dentro ali. Além dele e de Lúcio, havia o casal que eu vira pela câmera, Angélica e Marcos, uma repórter chamada Verônica, de uma TV local, uma enfermeira, Janaína e o velho de quem ela cuidava, Seu Marcos, Patrícia, cujo nome tinha tudo a ver com a personalidade e Alberto, um homem no auge de seus 40 anos, que tinha uma loja no shopping e que, agora, não tinha mais nada.

_ Quer um Mac? É só escolher o sabor...

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 16

No shopping, luzes acesas e música tocando. Um forró de plástico chato e massante, daqueles que tocavam no São João de Campina Grande mas não eram pagos pelo Governo Estadual. Ainda assim, tocava em todos os lugares.

Entrei pelo estacionamento, por uma entrada na livraria e deixei a entrada acessível. Estava me tornando um estrategista melhor conforme o tempo passava. Pensava em rotas de fuga, alternativas, caminhos diferentes. Em situações normais, agindo por ímpeto, eu não pensaria em caminhos para fugir. No mundo real éramos mais inconseqüentes. Grande parte dos erros que cometíamos tinham ligação com o fato de que não pensávamos nas conseqüências deles. Perdi amizades, amores, trabalhos por causa de atitudes impensadas.

No meio de um mundo tomado por zumbis, no entanto, inconseqüência é sinônimo de morte e eu não podia me dar o direito de morrer. Entrei no shopping pela porta de vidro da livraria e era como se nada tivesse acontecido. Afora manchas de sangue, marcas de tiro e vitrines quebradas, as luzes e sons do shopping estavam iguais.  As escadas rolantes funcionavam todas para baixo, impedindo os zumbis de subi-las. Sem corpos espalhados, apesar das marcas de batalhas, logo pensei que todos os que morreram ali tinham revivido e eu teria que mata-los.

No térreo, algumas lojas haviam sido saqueadas. Muitos manequins jogados nos corredores e vitrines quebradas. TVs de última geração jaziam quebradas ou ligadas em chuviscos que nada diziam. em uma vitrine uma TV reproduzia um videoclipe de uma cantora japonesinha de seus quinze anos, e lembrei de uma conversa que eu havia tido com um amigo publicitário sobre aniversários de quinze anos.

_ Imagina, Ernesto! Isso é um filão para as produtoras! Quando a menina faz 15 anos os pais pagam a produção de um videoclipe teen para elas. Não é o máximo?

Que menininha não ia querer uma megaprodução para um clipe de uma música que gostasse?

Subi para o outro andar por uma escada que tinha no final de um dos corredores. O local mais seguro era o piso superior. Não sabia o que me esperava lá em cima, por isso puxei o revólver novamente. De revólver em punho, pensei nas inúmeras possibilidades. Haveriam sobreviventes ali além do casal? Eles já estariam mortos? Será que ainda tinha comida na praça de alimentação?

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 15

Senti medo de gostar daquilo. Medo de quem eu poderia ter sido, caso não encontrasse outros caminhos. Sempre fui fraco para qualquer coisa. Nunca coloquei um cigarro na boca porque nunca tive curiosidade, mas sabia que se o fizesse, não ia conseguir mais largar o vício. A bebida foi mais difícil do que eu imaginava. Quando jovem, porres feéricos, como diria Lobão, que foram sendo substituídos por uma vida mais ascética. O controle do peso era difícil, sempre uns quilinhos acima do ideal. Eu queria me dar os pequenos prazeres da vida, comer, beber, fazer amor. A juventude é feita disso, também.

Encontrei outro caminho, mas e se tivesse seguido uma vida desregrada? Será que ainda estaria vivo para contar história? Nas últimas semanas havia sido a disciplina a conduzir meu eu. Acordar no mesmo horário, evitar as luzes acesas à noite, evitar barulho e confrontos, fazer exercícios, desenvolver estratégias. Se eu fosse alguém desregrado certamente sairia na rua a esmo, ou, se fosse acomodado, teria ido para o Almeidão atrás de proteção do governo. Um bolsa-família para continuar vivo... Não.

Cuidei de meu próprio destino, e enquanto entrava no shopping, guardando o 38, para não ceder à tentação de me ver com a arma nas mãos de novo, pensei que este era o melhor jeito de me conduzir. Diferente da maior parte das pessoas, que agiam por ímpeto, aquele que age com disciplina, atenção e cuidado consegue alcançar objetivos de longo prazo.

Fiz planejamentos para toda uma vida ao lado de Lenora e Augusto. Viagens, passeios, a educação dele, plano de saúde. Durante aquela semana tinha parado para olhar o tanto de cartões inúteis haviam agora na minha carteira. do cartão de crédito para compras ao cartão de afinidade da assinatura do jornal. Para que tudo isso? Em casa, em uma cestinha sobre a cômoda da cozinha, ficavam as contas, que ultimamente, por um golpe de sorte do destino, não se acumulavam mais. Cartões, contas, isso não importava mais. Planejamento tinha outro significado. Se, por um lado, todo o meu plano de vida tinha ido por água abaixo, por outro, meu plano de sobrevida precisava dar certo.

Planejamento, disciplina. Tudo isso, durante minha vida havia me levado ao ponto onde eu estava no mundo dos vivos. Uma conta de banco razoavelmente tranquila, duas viagens internacionais a passeio, duas a trabalho, as próximas férias programadas para serem passadas em Buenos Aires, onde eu e Lenora havíamos estado brevemente no passado, uma cidade que queríamos ver novamente. Tudo planejado. E nada aconteceu. Era supérfluo? Ao contrário, era importante. Foi Buenos Aires que restaurou nosso casamento durante a grande crise que enfrentamos em nossa união, e foi um dos momentos mais bonitos da minha vida.

A Disciplina poderia me levar de volta a viver em um mundo normal? Não. Porém, emprestava certa normalidade ao mundo louco que me cercava, me forçando a pensar em diversas coisas que não fossem os  mortos-vivos do outro lado dos muros. Só assim eu havia conseguido sobreviver tanto tempo no mundo perdido. A disciplina estava me salvando, e me conduzindo.


quinta-feira, 7 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 14

Do outro lado da cerca eu já havia chamado a atenção de três desmortos, que vinham em minha direção. Um homem negro, de seus trinta e poucos anos, uma velha arcada e um guri de seus 12. Calmamente peguei o bastão de beisebol e o preparei. O primeiro a cair foi o negro, com um empurrão simples no peito. Eu precisava de espaço para derrubar os outros dois, que foram muito mais fáceis. Nunca agi com violência com outras pessoas. Enquanto pastor, sempre acreditei na máxima de dar a outra face para bater. Era um incentivador da paz.

No entanto, como diria Maquiavel, é impossível evitar a guerra, você só consegue adia-la, e ali estava a guerra, diante de mim, a guerra pela vida contra aqueles que já não são vivos. Uma guerra que, apesar de nenhum de nós querer lutar, precisa ser lutada a todo custo, com empenho.

Apesar de um incentivador da paz, não via lógica em manter vivos aqueles que já haviam ido embora. Levando em conta que suas almas já não deveriam estar ali, presas naqueles corpos, e se estivessem, deveriam estar em profundo sofrimento, mata-los de vez era um favor para eles e para Deus. Por isso bati na cabeça da senhorinha com vontade, enterrando o bastão até a altura dos olhos e espalhando sangue por todos os lados. Respingado, ainda consegui limpar o rosto antes de chegar a vez do menino de doze anos.

Antes de bater, olhei bem para o rosto do zumbizinho. Pobre criança consumida pelos desmortos. As marcas de mordidas estavam nos dois braços e as vísceras estavam para fora, pretas e tomadas por bichos. Quantas desilusões haviam sido tiradas daquela criança? Provavelmente muitas. Toda a adolescência, espinhas, insegurança, bulling, amores platônicos, desejos de crescer, faculdade, primeiro beijo, primeira vez, tantos erros, discórdias e dificuldades.

Ficou bem mais fácil bater na cabeça dele depois de pensar tudo isso.

Antes que o negro levantasse, puxei o 38. Nenhum zumbi no perímetro de visão, o que faria com que nenhum viesse em nossa direção. Precisava experimentar o coice da arma, sentir seu peso e entender como ela funcionava. Segurei com as duas mãos, apontei para a cabeça e apertei o gatilho. O cão encostou na bala e deflagrou o projétil, que avançou por dentro do cano da arma, gerando um coice forte, que fez meus braços virem para trás ao mesmo tempo que a cabeça daquele ex-homem foi atingida e atravessada pela munição. Seu corpo caiu para o lado, morto de vez, enquanto eu admirava, ainda, a arma, fumegante, em minhas mãos.


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 13

Segui pela Ruy Carneiro até a praia, dando uma parada no supermercado que tem na avenida. Imaginei que aquela região era bem melhor para morar, selecionei alguns lugares possíveis e comecei a me preparar para uma possível migração do centro para ali, isso se voltasse a ver minha casa.. Encontraria uma casa grande, com muros altos, e grande quintal onde esperaria por sobreviventes. Aos poucos poderíamos ir limpando o bairro, fortalecendo nosso pequeno grupo, ampliando nosso alcance, renascendo enquanto sociedade. Me dei o direito de sonhar enquanto caminhava olhando aquelas casas grandes que tem na Ruy Carneiro, com seus muros altos.

Foi quando vi a estação de luz da Energisa. Muros de blocos de concreto altos, fornecimento de energia elétrica garantido, proteções naturais em volta, como o pântano que tem atrás, portões de aço grandes e pesados, espaço territorial, uma base preparada para que pessoas durmam nela, segurança a toda prova. Ali era perfeito, e ainda poderíamos manter a rede elétrica funcionando, de alguma forma. Não seria difícil enxergar um recomeço que partisse dali. Segui o caminho me prometendo voltar àquela base mais tarde, para um estudo mais aprimorado e cuidadoso.

No caminho para o shopping ainda encontrei muitos zumbis, com os quais evitei contatos. Pensei que veria ainda mais, mas parecia que a cidade tinha sido evacuada com eficiência pelo governo. Eu havia lido em um site que as grandes capitais haviam sido as primeiras cidades a serem esvaziadas. No caso de João Pessoa, toda a população viva tinha sido direcionada para o Almeidão. Imaginei que ainda estivessem lá, e que não seria de todo ruim ir para o estádio para ter com quem conversar. Depois pensei em escassez de comida, insanidade coletiva, falta de armas, insegurança. Pensando bem, queria passar o mais longe possível do Almeidão.

O estacionamento do shopping me parecia bastante calmo. Campo aberto, espaço grande entre os carros, não havia muitos deles na área para tentar me pegar. Joguei a bolsa por cima da cerca de metal e pulei. A dificuldade em executar esta tarefa me fez pensar que eu precisava de mais exercícios, e mais prática em escaladas e coisas do tipo. Zumbis não escalam paredes, mas eu poderia escalar. Lembrei de todas as técnicas de sobrevivência que não aprendi e todas as que aprendi. Em meu período como capelão das forças armadas passei por um curso de sobrevivência na selva que foi bastante pesado e denso. Sobreviver não é uma opção, e sim a única escolha. Bons tempos servindo em Porto Príncipe, capital do Haiti, quando os zumbis eram apenas uma lenda que os vudus locais contavam para assustar o povo.

Na verdade não eram bons tempos. Era um país que sofria com uma guerra civil pesada, passando por uma situação complicada. Auxiliar os soldados a ter fé nos momentos mais difíceis era meu papel. Voltei e, depois de alguns anos, a situação no país conseguiu ficar pior, com o terremoto. Ouvi alguns "evangélicos" falando sobre a justiça divina recaindo sobre o país, que o vudu estava sendo vingado pelas "mãos poderosas do Senhor". Fico pensando no quanto conseguíamos ser egoístas com nossas opiniões e nossa forma de ver o mundo. Quer dizer que só porque as pessoas não acreditam no mesmo que eu elas não têm direito a sobreviver? Precisam ser engolidas por um terremoto, ter seus lares destruídos e seus parentes ceifados eternamente? Não vivemos no mundo do antigo testamento. Aliás, já não vivemos sequer no mundo do novo depois do apocalipse.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 12

Foi na junção da Epitácio com a Ruy Carneiro que vi alguns zumbis. Era um grupo de quatro, que andava meio perdido. Foi meu primeiro contato com um corredor, que, à distância, veio correndo para a minha direção, saltando com grande agilidade por entre os carros. Era uma mulher jovem e magra, usando um vestido que um dia foi rosa, mas agora, coberto de sangue, não era mais. Os outros três vinham atrás dela, mais lentos, enquanto ela me olhava fixamente, querendo minha carne.

Pensei em usar o 38, mas isso só chamaria mais atenção para a minha posição. Peguei o bastão de beisebol com as duas mãos, deixei a mochila no chão e avancei na direção dela. O poncho não adiantava contra corredores, porém, notei que os caminhantes que estavam com ela apenas começaram a vir na minha direção após ela correr e grunhir. Quando estava perto dela, dei um passo para a esquerda e aprontei a batida, como quem rebate uma bola de beisebol. Foi quase um Home Run. Esmaguei o rosto da desmorta com o bastão, fazendo a mandíbula voar longe enquanto a corredora caía como um saco, de costas, no chão ao meu lado. Levantei o bastão e acabei o serviço com mais uma batida no crânio enquanto os outros três zumbis vinham na minha direção.

Antes de eles chegarem, ainda tive tempo de pegar a mochila no chão e deixa-la em um local mais próximo de mim para, então, partir para cima deles. O primeiro, eu apenas derrubei, com uma bastonada no pescoço, quebrando a espinha. O segundo teve a face afundada pelo cacetete e o terceiro eu apenas deixei lá, vestindo o poncho novamente, ele me identificou como um deles e pronto, me ignorou completamente.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Livro 2 - Capítulo 11

A garrafa de água já estava na metade e eu ainda não tinha andado nem uma hora e meia direito. Nenhum zumbi a vista, mas certamente eles estavam espalhados por toda a região. Na loja da Epitácio eu consegui meu bastão de beisebol, e agora o carregava orgulhoso, experimentando contra o ar. Peguei mais um, por precaução, e um par de tênis confortáveis, meias, cuecas e outros utensilhos. Olhei uma bola de basquete e pensei de que valeria isso agora que só tenho eu para jogar? Melhor seria não levar algo tão desajeitado, se não teria uma quadra disponível no mundo e nem um adversário com quem eu pudesse dividir meu jogo.

Evitar Mandacaru foi uma escolha acertada. O bairro deve estar cheio de desmortos, e como tem muitos altos e baixos, é mais difícil pensar em uma estratégia de fuga. Pela Epitácio, todos os caminhos alternativos são avenidas largas, com espaço para correr, o que facilita o desenvolvimento de uma estratégia de fuga rápida e eficaz. Temos que pensar sempre nas piores possibilidades. Uma manada, agora, não seria uma coisa boa de se ver e quanto mais alternativas de fuga eu tiver, melhor.