Janaína cuidava de Marcos com carinho e cuidado. Admirei aquela moça jovem que se dedicava ao velhinho enquanto o mundo caía lá fora. Gostava de exemplos de altruísmo, eles me alimentavam de esperança em uma humanidade melhor.
No passado eu havia conhecido Arinéia, uma senhora que era enfermeira. Era membra da igreja que eu dirigia no interior de São Paulo, quando ainda era mais jovem, antes dos meus trinta. Néia, como a gente a chamava, era dedicada e empenhada como nenhuma outra enfermeira que eu havia encontrado até então. Janaína, no entanto, era ainda mais dedicada. No meio do caos que se estabelecera no mundo, ela havia preferido estar ao lado daquele homem moribundo, que exigia seus cuidados.
_ Como vocês vieram parar aqui?
_ Eu estava transportando o seu Marcos para casa. Ele havia acabado de sair da UTI do hospital após uma operação. Estava começando a recuperação. Estávamos eu e o motorista da ambulância nos bancos da frente quando o trânsito da avenida parou. Nós não sabíamos o que estava acontecendo, então esperamos. De repente, vejo que algumas pessoas estão andando e pulando para dentro dos carros, ou puxando os motoristas e passageiros para fora. A primeira coisa que pensei é que eram trombadinhas, afinal, nessa parte em que o Retão e Manaíra encontra a BR-230, a coisa mais comum é um bando de trombadinhas, né?
_ Então, o Luís tentou dar ré, mas já tinha outro carro logo atrás. Peguei minha bolsa, guardei todas as coisas dentro dela e fui para a parte de trás da ambulância, junto com o seu Marcos, que estava dormindo. Eu não imaginava que eram zumbis até ver de perto, quando um deles estourou o vidro do carro e puxou o Luís para fora, mordendo seu pescoço quando ele foi para o chão. Pensei em gritar, mas quando vi o que estava acontecendo, tudo o que fiz foi fechar a via de acesso do banco da frente e ficar quieta, esperando a carnificina acabar. Fiquei ali por volta de duas horas e meia, chorando baixinho enquanto o mundo acabava lá fora.
_ Quando notei que tudo estava quieto, abri o postigo que dava para a rua para ver como estava tudo lá fora. Nenhum zumbi à minha volta. A primeira coisa que pensei, sendo honesta, foi em fugir para longe, mas minha obrigação de cuidar do seu Marcos falou mais alto e eu não consegui abandona-lo. Então, quando vi o shopping do lado, pensei em correr para lá. Lembrei que é um lugar seguro e talvez encontrasse alguém que pudesse me ajudar a carregar seu Marcos para fora. Encontrei o Claudemir aqui, que me ajudou com a maca e os utensilhos para manter a vida do seu Marcos. Ele está em coma e eu me sinto responsável por mante-lo vivo. Ainda bem que os equipamentos da ambulância eram de última geração.
Ela falava isso enquanto cuidava do homem, massageando seus braços e pernas. Notei que Claudemir lançava um olhar terno para a enfermeira enquanto conversávamos. Seu interesse ia além do cuidado da saúde. Vi que Claudemir realmente se interessara por Janaína, e parecia recíproco.
Mesmo em momentos de desespero o homem encontra tempo para o amor. Afinal, não foi para isso que fomos feitos? Amar e ser amados? Qual outro propósito pode haver em nossas vidas? Neste mundo de desmortos e destruição, nosso maior propósito é sobreviver, no entanto, esta sobrevivência não tem sentido sem que o amor aconteça, afinal, para que viver senão para encontrar alguém com quem valha a pena viver? Eu tinha Lenora. Depois, encontrei Renata. Agora, tenho quinze zumbis à minha volta, ainda me olhando. Não acho que eles me amem. Na verdade, não acho que zumbis amem qualquer coisa que não seja um cérebro quente, ainda vivo, de preferência. Estes querem o meu.
Mas, como tenho o direito à licença poética de determinar o tempo correndo dentro de minha mente, ainda tenho histórias para contar desde ano e meio de mundo perdido que encarei. Depois de sair daquele shopping ainda corremos por tantos cantos, ainda procuramos tantas coisas. Tudo o que aconteceu até este momento, até o shopping, não havia passado nem sequer dois meses desde o início da crise.