quinta-feira, 30 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 10

Desci até a avenida Getúlio Vargas. Carros por todos os lados. Na avenida que dá acesso à lagoa do parque Sólon de Lucena, carros batidos e zumbis por todos os lados. As casas, lojas e comércios tinham fachadas quebradas e destruídas. Andei devagar pela lateral do Lyceu Parahybano, subindo na direção de quem vai para a avenida Beira Rio. Desceria pela Epitácio Pessoa até a praia, e lá seguiria para o shopping. No caminho pensei em parar em uma loja esportiva que eu sabia que tinha para pegar o bendito bastão de beisebol de alumínio que eu queria, forte e leve, perfeito para matar zumbis.

Cheguei na Igreja Batista e as portas estavam fechadas. Conheci muita gente dali. Ver a igreja fechada, vazia, deixou-me triste. Nenhuma igreja merecia este destino. Me prometi visitar algumas igrejas da cidade para saber o que aconteceu com elas, especialmente as históricas, como a de São Bento e a de São Francisco, na parte antiga de João Pessoa. No momento, seguiria na direção da avenida Epitácio Pessoa. Uma caminhada de cerca de três ou quatro horas para chegar à praia e depois de mais cerca de meia hora para chegar ao shopping.

A caminhada seria longa e eu sabia que ia precisar tomar todo o cuidado que eu pudesse. Já havia notado que qualquer som chamava a atenção dos desmortos. Ver tantos deles espalhados pelas ruas era o maior sinal da catástrofe pela qual estávamos passando. olhei em volta, vendo os prédios altos e pensando nas famílias que deixaram de existir. crianças que deixaram de crescer, pessoas que não morreriam mais e que, no entanto, já estavam mortas. alguns dos zumbis me viam, mas estavam longe demais para tentar uma abordagem, e logo desistiam. outros que estivessem mais perto começavam a me seguir, mas meu ritmo mais rápido os fazia desistir logo e voltar a seu caminho normal. eles soltavam um som grutural, um gemido estranho, que vinha de dentro deles, do fundo mesmo. O som dos mortos que pedem piedade.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 9

Eles pareciam espertos, sem contar que eram os primeiros vivos que eu via em quase um mês. Já estava pensando em arranjar uma bola de vôlei para chamar de Wilson e tudo. A iminência de contato com vivos foi mais forte que a necessidade de segurança e me prometi que, no dia seguinte, encararia um pequeno passeio até o Manaíra Shopping. Para quem não agüentava mais ficar parado, era uma ótima desculpa.

Sabia que a viagem duraria uns dois ou três dias, o que seria uma experiência positiva, já que seria a primeira vez que eu dormiria fora de casa desde o apocalipse. Na verdade, era a primeira vez em anos que eu dormia fora de casa. Mais do que amedrontado, eu estava excitado com a ideia de ter que procurar abrigo, segurança, alimento e sobreviventes no meio do caminho. Preparei a mala com tudo o que precisava. Os cacetetes, a Glock, munição, comida enlatada. Com o GPS, desenhei a melhor rota para o shopping, mais curta e menos habitada. Um dos caminhos passava por Mandacaru, o bairro mais populoso de João Pessoa. Vesti o poncho de guerra, coberto de sangue e restos de desmortos e saí novamente à rua. Desta vez, provavelmente, para não voltar à casa tão cedo. Ou talvez, mesmo, nunca mais.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 8

Os zumbis que perseguiam o casal eram caminhantes. Um grupo grande. Acompanhei enquanto pude pela câmera, apenas os vi entrando em um centro comercial que tem no retão mesmo e fechando a porta atrás de si. Mal sabiam que poderiam haver outros zumbis lá dentro, surpresa que, para evitar, aprendi a entrar sempre com o rosto virado para a frente, deixando o caminho livre para uma possível fuga.

Diante da porta de vidro, um grupo de caminhantes simplesmente pára e fica tentando encontrar, de forma quase pacífica, uma entrada. No caso de não encontrarem, logo dissipam a manada. No entanto, se um dos zumbis for um corredor, saiba que você tem problemas, pois portas de vidro não significam nada para eles. E foi justamente o que aconteceu com o casal que eu estava vendo. Um homem de jaqueta corria na direção da porta de vidro se arremessando contra ela, deixando, a cada batida, uma marca maior. Pela câmera eu via poucos detalhes, mas consegui identificar o momento em que ele atravessou a porta e entrou, seguido pelos caminhantes que estavam em volta. A violência do zumbi foi crescendo conforme caçava o casal dentro do estabelecimento sem encontrar. Uma porta dos fundos deveria ter dado o escape de que precisavam, pois os vi, pouco depois, passando devagar pela rua lateral do lugar, seguindo para o shopping Manaíra, ali perto.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 7

Aliás, eu já expliquei quais são as classes de zumbis que eu identifiquei? Para melhorar a minha qualidade de luta contra os zumbis, identifiquei suas classes e os dividi em quatro grupos, de acordo com o avanço de sua putrefação natural.

O primeiro grupo é dos corredores, zumbis recém renascidos, ávidos de carne, sangue e miolos. Eles ainda são moles, maleáveis, jovens. Correm para buscar suas presas. Por serem mais impetuosos, agem sozinhos. São grandes caçadores, com raciocínios básicos mais evoluídos que os grupos seguintes de zumbis. Eu chamo os corredores de snyderianos, por causa de Madrugada dos Mortos, a refilmagem que o Zack Snyder fez do clássico do Romero. Na sua refilmagem, os zumbis correm, e são ávidos por vivos. É assim que são os corredores. Esfaimados, rápidos, violentos, solitários. Guardam, ainda, o egoísmo de sua humanidade, pois não dividem a caça com outros zumbis, os expulsando de cima do corpo que está comendo.

O maior grupo é dos caminhantes, ou, como eu chamo, Romeristas. São os zumbis que mais lembram a face clássica dos zumbis. Caminham lentamente soltando um grunhido indecifrável, arrastando os membros. Os corredores se tornam romeristas depois de cerca de um mês de sobrevida. É quando o rigor mortis, a rigidez que os músculos e nervos vão tomando com a putrefação, começa a mandar no ritmo do corpo. Eles ficam lentos, por isso precisam andar em grupos. São quinze, vinte, até duzentos mortos-vivos em uma manada. Sozinhos, os romeristas são fáceis de controlar. Em grupos, no entanto, como este que me cerca enquanto eu lembro de tudo isso sem pressa, me dando a liberdade literária de descrever uma cena em câmera lenta, como esta. Metalinguagem das metalinguagens, assumir uma coisa dessas pode estragar o andamento da história, mas, voltemos aos tipos de zumbis.

Os romeristas “evoluem” para os errantes, que são os zumbis cujo estado de putrefação é já tão evoluído que os pedaços começam a cair, o rigor mortis é bastante avançado e a fome não é tão imperativa. Ao menos é o que parece. Eles ficam parados lá, sem se mover, soltando um gemido triste e vazio, de quem quer comer mas não consegue. Eles se movem, mas tão devagar que não oferecem risco nenhum a ninguém. Quando passava ao lado deles eu apenas cortava suas cabeças, acabando com seu sofrimento.

O último grupo é o dos sentados. Como não encontrei palavra melhor para defini-los, foi esta mesmo, pois é o que são. Eles ficam sentados, esperando que a comida venha até eles. Acho que, em vida, eram pessoas acomodadas, pois mesmo alguns romeristas, quando sem as pernas, ainda se arrastam em busca de comida. Os sentados são zumbis que aceitaram sua condição de desmortos e sentam esperando a fase de errantes chegar. Não se movem, mas, se um vivo se aproxima deles o bastante para que ataquem, eles vão atacar. São mais traiçoeiros, se fazendo de mortos, se escondendo em locais escuros, esperando por nós, como uma criança que esperava a bandeja de doces em uma festa infantil.

sábado, 25 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 6

O site da prefeitura de João Pessoa oferecia a vista de algumas câmeras posicionadas ao longo da cidade e a visão era de guerra. A Epitácio Pessoa lotada de carros do início ao fim (não que estivesse muito diferente de como era antes do apocalipse). A Beira Rio, na altura do acesso à BR-230 tinha um caminhão do exército atravessado na pista, cheia de carros e com alguns zumbis espalhados pelo lugar. Em outra câmera, que não consegui identificar onde era, mas parecia um trecho do retão de Manaíra, dois sobreviventes, um casal, correndo no meio dos carros, perseguidos por um grupo pequeno de caminhantes.

Livro 2 - Capítulo 5

Na vida comum era assim. Os maiores problemas que enfrentei em empresas por onde passei foram os problemas de convívio. Não era o trabalho em si, mas lidar com o ser humano e suas particularidades. Gente tentando te passar a perna, gente tentando ter vantagem diante de situações adversas, outros querendo se aproveitar da sua simplicidade. Quando digo que não existe muita diferença entre o que era o mundo antes e o que é agora, não estou exagerando. Continuamos todos fugindo de servir de alimento para os outros.

Rafael tinha um plano. Encheu uma Kombi com itens de primeira necessidade antes da insurreição começar no hipermercado. O carro abastecido estava separado em um lugar seguro, perto da saída de emergência que eles tinham determinado. Chamou duas pessoas de confiança, que sabia que seriam pontas firmes e saiu do mercado. Segundo contou, foi um verdadeiro tiroteio, com os zumbis cercando a saída e com os outros sobreviventes tentando impedir a saída deles. O último contato que eu tive com ele, naqueles dias, mostrou que estava indo para algum lugar no sul, provavelmente Florianópolis.

_ É uma ilha. É bastante seguro.

Depois, silêncio.

Livro 2 - Capítulo 4

O contato mais sólido que fiz foi com um grupo de sobreviventes que estava dentro de um hipermercado na cidade, isolado dos desmortos por cercas e muros. O líder deles falava em fugir, mas era improvável ter sucesso nesta tentativa. Era um grupo de cerca de 20 pessoas, pequeno, mas coeso. Se dividiram em diversas tarefas e ocupavam seu tempo. O mercado oferecia tudo de que eles precisavam, desde proteção até rotas alternativas de fuga, para o caso de precisarem. Conversamos algumas vezes pelo MSN. Fiquei feliz de ver que havia grupos de sobreviventes em outros lugares e pensei na possibilidade de haver um desses em João Pessoa. Afinal, eu não poderia ser o último sobrevivente da cidade.

No entanto, durante uma de nossas conversas, Rafael enfrentou uma insurreição, que acabou expondo o grupo ao perigo dos desmortos, que invadiram o andar térreo do mercado, acabando com grande parte do espaço com que eles contavam e matando alguns elementos do grupo. Com um grupo e um espaço bem menores, era uma questão de tempo até que os mesmos problemas enfrentados pelos sobreviventes de Aparecida de Goiás. Em um apocalipse zumbi, a fome é apenas uma das preocupações que você precisa ter. Manter a cabeça no lugar pode ser mais difícil do que conseguir o que comer.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 3

Em Aparecida de Goiás, um grupo de cerca de quarenta pessoas se escondeu dentro de um supermercado no início da praga. Ficaram fechados no escuro durante dez dias, sem contato com o mundo externo. Eles tentaram se organizar e dividir algumas tarefas, mas o som dos grunhidos e das mãos dos zumbis batendo nas portas de metal afetou alguns deles. Após dez dias, três deles haviam cometido suicídio, outros dez estavam em depressão profunda e o resto do grupo lutava entre si pela liderança. Acabou que um dos membros que estava deprimido abriu uma das portas verticais do supermercado deixando os desmortos entrar. Apenas dois deles sobreviveram. O som que eles soltam é perturbador. Enquanto lia aquela história no blogde um dos dois sobreviventes, fiquei imaginando uma turba de cem, duzentos zumbis cercando um local, batendo com as mãos, esfregando seu corpo nas portas.

Não apenas o som, mas a visão deles era repugnante. Imagino como estava a menina Jesse, de Omaha, nos Estados Unidos, que conseguiu matar quinze zumbis com uma carabina de baixo calibre. Estava cercada por uma pequena manada, pegou a carabina e começou a atirar. Quinze balas, todas na cabeça dos necrófilos que a cercavam. Os viu cair um a um à sua volta. Jesse não se separa mais da carabina e encontrou um refúgio seguro na Flórida, em um presídio perto do litoral. Um grupo grande de cientistas se reuniu lá para tentar encontrar uma solução para a praga. Ela tornou-se atiradora de elite do grupo, mas até o momento, não haviam novidades sobre a bendita cura que procuravam.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 2

Um zumbi conseguiu invadir um estádio em Campinas, no interior de São Paulo. Mais de vinte mil pessoas estavam lá dentro aguardando helicópteros do governo. Todas foram condenadas pela presença do desmorto e o estádio acabou sendo abandonado, com a polícia e a força nacional deixando o lugar à própria sorte. Os poucos sobreviventes fugiram e se esconderam no alto de um prédio no centro da cidade. No último relato que li deles ainda esperavam pelo resgate do governo.

Em Brasília, a Praça dos Três Poderes foi para onde confluiu grande parte dos sobreviventes nos primeiros dias de caos. Mais de cinco milhões de pessoas se aglomeravam no local, esperando decisões dos governantes. Até onde sei, ao menos imagino, a presidente deveria estar em um bunker, escondida, protegida por sua guarda pessoal. Multidões foram pisoteadas e zumbis surgiram no meio do povo. Foi um banquete. No final, um vídeo no youtube mostrou a praça sendo coberta por helicópteros e as pessoas cheias de esperança de que aquilo fosse a proteção do governo. Ledo engano.

Vinte helicópteros armados com metralhadoras .50 fizeram o serviço de estraçalhar os sobreviventes que ainda estavam lá. O cinegrafista amador conseguiu fugir para dentro de um prédio de um dos ministérios, de onde conseguiu postar o vídeo. Se ainda houvesse governo legítimo no Brasil, isso seria um ato de covardia, mas como não há, foi apenas crueldade mesmo.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Livro 2 - Capítulo 1

Nas semanas seguintes, silêncio. Não saí de casa. Alimentação, exercícios, estratégia. Li muitas histórias e relatos na internet. Muitos sobreviventes contavam seu dia a dia em blogs e cheguei a fazer contato com alguns deles em diversos lugares do Brasil e do mundo. Alguns relatos eram assustadores e assombrosos. Davam mais medo dos vivos que dos mortos.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Download - Livro 1 - "Eis o Homem!"

Para os leitores, o primeiro livro de "A Revolução dos Mortos" disponível para download!

Livro 1 - Eis o Homem! (Nietsche) Aqui!

Aguardo seus comentários!

João Thiago

terça-feira, 14 de junho de 2011

Capítulo 14

Encaixei na mochila o machado e peguei os dois cacetetes. Um em cada mão, são mais leves, e, apesar de não matar os zumbis, os afastam indefinidamente, e isso era o bastante para a manada que estava lá fora. Com o barulho da briga alguns deles vieram roçar na porta da delegacia e já se podia ouvir os sons que faziam. Tentei encontrar outro caminho, por trás, uma saída dos fundos, mas nada. Um muro alto, que não dava para escalar a tempo. Subi as escadas no andar superior a procura de uma janela de escape. Abro a janela e vejo a multidão desmorta sob mim. Uns urubus no parapeito onde estou começam a fazer barulho, os faço voar batendo neles com os cacetetes. O cheiro é indizível. Uma mistura de carne podre com sangue velho e fumaça. Movimento-me devagar, sem fazer barulho, tentando escapar para a lateral da casa, de onde posso pular para a adega, onde vou pegar umas garrafas de cachaça e fazer uns coquetéis molotov. Ah, internet, eu te amo.

Saí pela lateral da casa, descendo a parede devagar, evitando fazer barulho. Todos os zumbis estavam forçando a porta da frente, que cede diante do peso deles. Com voracidade, os zumbis invadem a delegacia, à minha procura. Sou carne, alimento neste mundo enlouquecido em que me meti. Do lado de fora da delegacia, a fila ainda é grande, e eles se empurram para entrar. meu cheiro ainda deve estar forte lá dentro.

Ao meu redor, mais nenhum zumbi. a partir do momento em que todos eles convergem para um ponto, os demais fazem o mesmo. São atraídos pela manada. O grupo fala mais alto. Eis a coletividade Borg funcionando na Terra. Com todos os zumbis dentro da delegacia, consegui tempo para ir à adega e preparar meu plano de limpeza da área.

Entrei na adega e dei de cara com metade da dona, a Keila, uma moça de seus 30 anos, bonita e jovem, muito simpática que sempre separava o suco que eu gostava de tomar de manhã. seu corpo já estava podre, o que mostrava que fazia tempo que havia sido comida. reconheci o pedaço do rosto que ainda estava visível. As pernas haviam sido comidas e um dos braços também. todo o tórax e parte da barriga. algumas tripas ainda saíam e o crânio estava aberto. Sem cérebro, sem vida.Dei graças a Deus por ela não ter se transformado em um deles. Ela não merecia.

Mas, também, quem mereceria uma coisa dessas? Pensei nas pessoas que se transformaram nos monstros que invadiam a delegacia naquele momento. deveria haver crianças no meio daquele grupo, pais de família, donas de casa, aposentados, pessoas que viviam suas vidas, envoltas em seus problemas. gente comum. gente que amava, gente que tinha amigos, alguns tinham eventos combinados para o dia de hoje. carregavam as preocupações normais de cada um. Provas na faculdade, metas no trabalho, preconceitos, namoros de filhos. Aqueles necrófilos, comedores de cérebros humanos, eram, nada mais, nada menos, que pessoas comuns, que tinham expectativas, e que foram engolidas por um apocalipse, um evento de escalas bíblicas, que mudou suas rotinas, fez com que suas preocupações todas se mostrassem pequenas, mesquinhas e ávaras e, de repente, transformou tudo em morte e dor. Todos devem ter perdido entes queridos antes de serem transformados. Alguns podiam ter passado pelo mesmo que passei, enfrentando a própria esposa desmorta enquanto tentava sobreviver. Alguns devem ter tido que matar os próprios filhos.

Depois disso, e as preocupações? E a prova da faculdade? E as metas no trabalho? Nada mais valia ou importava no mundo que não a sobrevivência. Não vi como a coisa começou, mas sabia que, se não me cuidasse, eu ia acabar como qualquer um: desmorto, caminhando sobre a terra em busca de cérebros. Não queria isso para mim. Queria a preocupação com o pagamento do aluguel, as dívidas do cartão de crédito e o presente de aniversário do vizinho. Queria um mundo de volta, qualquer que fosse ele, eu queria viver.

Peguei duas garrafas de aguardente, embebi dois pedaços de estopa e ateei fogo. Todos os zumbis haviam entrado na delegacia. Na porta da casa, um deles ainda se virou a tempo de tomar uma garrafada na cara. O fogo se espalhou pelo líquido, que se espalhou sobre ele, queimando a podridão da sua carne. ele ainda tentou andar para algum lugar, mas em alguns minutos, caiu no tapete no caminho dos outros zumbis, impedindo sua saída. O fogo se espalhou pelo carpete, pelos móveis, cortinas e, em alguns minutos, tomava todo o andar térreo da casa. Alguns zumbis ainda conseguiram sair, cobertos de fogo, mas logo caíam no jardim da frente da delegacia, que começou a ficar cheio de corpos carbonizados.

Durante um tempo ainda fiquei olhando a delegacia pegando fogo, queimando de verdade, com todos aqueles desmortos dentro. Virei as costas e fui andando para casa. Queria restabelecer alguma humanidade em mim. Peguei algumas garrafas de vinho na adega para tentar comemorar alguma coisa. Se não comem orar, ao menos tomar um belo porre para tentar esquecer que a humanidade não existia, e que a sociedade, como a conhecia, nunca mais seria restabelecida.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Capítulo 13

Quando já estava a ponto de ceder, sem forças, consegui desvinciliar as pernas e empurra-lo para cima e para trás. Caído ele não oferecia muito risco. Lento, tentando se levantar, pude experimentar em sua cabeça a eficácia do machado na dizimação de zumbis. Uma batida vertical e a lâmina entrou até a altura do nariz, acabando de vez com o resto de sobrevida do bicho. O sangue podre cobriu minhas roupas, já imundas do sangue da minha mulher morta. Notei, então, uma grande dificuldade oferecida no manuseio do machado. Por causa de sua força, ele é eficaz contra um inimigo sozinho. Porém, em detrimento disso, contra uma manada, ele é uma arma fora de questão. Fiquei quase um minuto tentando tirar a lâmina enterrada no crânio do desmorto. Cercado por muitos deles, certamente eu já estaria morto. Em uma situação como a de agora, quando estou cercado por muitos desmortos, eu preferiria até lutar de mãos limpas.

Virei a delegacia de cabeça para baixo juntando coisas que poderiam ser úteis. Um celular com GPS, afinal, zumbis não alcançam satélites, uma pistola Glock, aquelas de plástico, que não são identificadas no detector de metais. Parece 9 mm, mas, como não conheço armas, terei que pesquisar. Munição, um revólver 38, um 44, mais munição, dois cacetetes, um colete a prova de balas (nunca se sabe que humanos loucos eu vou encontrar pela frente), dois teasers e spray de pimenta. Precisava descobrir se funcionava contra zumbis. Tudo isso dentro de uma mochila que ia nas minhas costas, levando todas essas coisas.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Capítulo 12

Naquele momento, na rua Dom Pedro, cheia de zumbis, andei devagar. Fazia o mesmo som que eles. Me movia como eles. Um ou outro ainda me olharam, mas ficou nisso. arrastando os pés e gemendo e grunhindo, fui devagar pelo canto da rua. Passei pela casa antiga, que estava com o muro derrubado, que um carro tinha entrado até o meio. os corpos do motorista e do passageiro ainda estavam lá, revividos. Alguns zumbis invadiam outros carros pela janela para comer a carne de pessoas mortas nos veículos. Passei pela adega ao lado da delegacia e vi tudo revirado. Zumbis não bebem, mas as pessoas que eles perseguem, sim. Me prometi passar ali na volta e buscar umas garrafas de vinho para beber mais tarde. Cheguei à delegacia, um sobrado dos anos 70, de porta alta, colado no prédio da adega. uma sacada por cima e uma laje projetada que chegava até a adega. Entrei devagar, sem chamar atenção dos desmortos fechei a porta atrás de mim devagar, trancando. Olhei em volta e tudo parecia tranqüilo.


Ledo engano. Ao entrar no corredor que dava acesso às salas dos fundos e à escada para o andar superior, um zumbi me encarava com aqueles olhos mortos e um cheiro de podridão. Estava muito perto. Não deu para fingir que era um deles, e o espaço do corredor era muito pequeno para bater nele com o machado. O desmorto pulou para cima de mim com os dentes amarelos expostos e uma força que extrapolava o natural, me jogando no chão e caindo por cima do meu corpo. Fui me arrastando até ter um pouco mais de espaço, enquanto ele, por cima, tentava me morder, sem sucesso. Era um policial e havia sido mordido no peito até as costelas. A camisa puída estava rasgada no ponto da mordida. Lembrei, na mesma hora, de uma policial da delegacia de homicídios que eu conhecera na época que era repórter. Renata. Será que ainda estava viva? Será que estava bem? Pensava nisso com o desmorto por cima de mim.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Capítulo 11

Pois veja só. Enquanto houver comida zumbis não morrem . Eles não têm outras necessidades. São máquinas de matar com dentes afiados, olhos baços e pele podre. Zumbis não precisam se reproduzir, e nem se preocupar com quem os pode comer. A não ser os urubus que voavam sobre eles, pousavam e mordiam a carne putrefata dos desmortos. Vi um dos zumbis andando com um urubu no ombro, que o mordia no rosto, tirando nacos de pele e comendo. Zumbis só morrem com ferimentos infligidos na cabeça, são caçadores de grupo, não lutam por liderança, tudo o que querem são miolos, e nada mais. Se a teoria de Darwin está correta, a maior prova de sua existência são os zumbis, forma “evoluída do ser humano”.

Voltando à teoria do caos, o mundo não se conduz de forma lógica. Afinal, o que seria mais lógico do que a humanidade continuar evoluindo em direção ao seu esplendor? Quem diria que o esplendor humano seria destacar suas características mais animalescas? Ao invés de homens e mulheres mais esclarecidos, o que nos tornamos? Desmortos. Ao invés da cura de todas as doenças para a busca de uma vida eterna, chegamos à morte absoluta. Quando pensávamos que a humanidade seguia em direção à perfeição, quando a ciência descobria big bangs e o segredo da vida, Deus nos dá uma rasteira e mostra que não somos mais que pó e cinzas sobre um planeta repleto de zumbis. Espero que os cientistas tenham sido os primeiros a serem convertidos à nova religião do momento: a dos que morreram e ressuscitaram. Pois é. A bíblia não dizia que os mortos andariam sobre a terra? Romero não dizia que isso ia acontecer quando o inferno estivesse cheio? A humanidade deve ter mandado tanta gente para o sheol que o diabo resolveu mandar alguns de volta. E podem me chamar de quadrado, retrógrado, fundamentalista, se quiserem. A verdade é que quem está cercado de desmortos aqui sou eu, e sei muito bem do que estou falando.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Capítulo 10

Virando a esquina, o inferno diante de mim. No fim da rua vejo a lateral do mercado municipal de João Pessoa e o cheiro vem a mim em uma lufada. Vários deles estão espalhados pela rua, e é ali que vejo, pela primeira vez, os sinais da destruição que eles devem ter causado desde que vieram a existir. Carros destruídos, carcaças ainda sendo comidas por urubus e desmortos. Vários deles. Uns quinze ou vinte. Para quem só tinha visto a mulher e o filho zumbis e alguns outros esparsos a distância, indo em outra direção, a visão era dantesca. O inferno estava sobre a terra, e caminhava lento, em busca de miolos para comer.

Minha presença não foi notada a princípio. Andei devagar, tentando controlar as batidas do coração. Não sei se os ouvidos deles são sensíveis a isso, então, preferi não correr o risco. Manter a cabeça no lugar em uma hora como esta é o segredo da sobrevivência. O mundo não se conduz por regras pré-determinadas, e o caos zumbi prova isso. afinal, o mundo virou de cabeça para baixo. Darwinismo social levado às últimas conseqüências. E eu sempre soube que não eram as raças mais evoluídas que iam  acabar sobrando, e sim as mais fortes, e zumbis são, por definição, o topo da cadeia alimentar.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Capítulo 9

          Ainda precisava de armas mais apropriadas, e sabia onde encontrar. Caminhei vestido de morte entre os carros na direção da rua Dom Pedro II, pedindo a Deus que não encontrasse nenhum deles no caminho. Imagine se Kirkman estivesse errado e eles me identificassem como um ser vivo. Não era isso que eu queria, de jeito nenhum. Eu só queria mesmo, naquele momento, entrar na delegacia, pegar algumas armas e ir embora de volta para casa. Depois, procuraria o batalhão da Polícia Militar ou uma base militar próxima. Quem sabe até brincar com uma Kalishnikov? No entanto, por enquanto, eu só queria mesmo era um 38 básico que me garantisse uma sobrevida.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Capítulo 8

Andando no meio dos mortos pude ver que não há humanidade alguma neles. Olhos vidrados, tudo o que querem é carne, comida, miolos. Um cérebro nunca é o bastante para eles. Iguaria rara nos dias de hoje, enquanto tenho uns quinze deles prontos para disputar o meu, que é tudo o que eles querem de mim. Pobres zumbis, mal sabem que a vida tem outros significados além de comer, dormir, sobreviver.

Mas não era assim antes? Não era assim que a maioria de nós vivia? Uma sobrevida, correndo atrás de pagar as coisas, só querendo dos outros aquilo que tinham para nos oferecer, e não oferecendo nada de volta? Retiro o que disse sobre os zumbis não terem nada de humano. Eles tem a nossa desumanidade para com o próximo. Eles não querem saber se você vai sentir dor, eles querem aquilo que você tem para eles. Conheci muitos homens que não tinham coração, assim como estes desmortos. Muitos outros que só podiam lutar pela sobrevivência. Conheci poucos que se davam ao outro pelo prazer de o fazer, sem esperar nada em troca. Seus exemplos sempre me alimentaram. Ghandhi, Jesus, Malcolm X, o Dr. Martin Luther King, e tantos outros que preferiram a vida do outro à sua própria. No entanto, entre escolher a vida e a morte, escolha, pois a vida, dizia um cartaz da Campanha da Fraternidade de uns dois ou três anos antes de começar esta praga.sou um pastor evangélico, mas sempre olhei para as outras manifestações de fé com respeito e temor. Creio que todos têm o direito de acreditar no que quiserem, e eu acredito que estes malditos zumbis me cercando podem me matar a qualquer momento.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Capítulo 7

Dois carrinhos de compras e dispensa cheia. No entanto, diferente do que eu imaginava, não encontrei nenhum segurança comido. Eles devem ter fugido. Ainda não tenho um 38, mas no dia seguinte, na delegacia, eu o procuraria, assim como a cacetetes e outras armas de corte. Aliás, preciso ir a uma loja de materiais para construção. Facões, enchadas e foices são fundamentais nessa hora de desespero. O machado, por ser pesado, é uma arma de manuseio complicado, lento e difícil de carregar. Um facão bem afiado é bem melhor. Lógico que o ideal seria uma kataná japonesa, mas onde eu encontraria uma espada destas para matar zumbis em João Pessoa? Pois é. Pensei em tudo isso no caminho de volta para casa, carregando os dois carrinhos de compra por entre os carros na rua.

Energia elétrica é uma coisa muito boa, e enquanto a rede não for comprometida, o fornecimento está garantido. Dorothy já dizia que não há lugar como nosso lar, e para mante-lo, eu precisava sair de casa para buscar todas as coisas de que minha vida precisava. Como fazer isso? Como sair na rua? Kirkman e Adlard me ensinaram novamente. Embebi algumas roupas velhas com o sangue da minha esposa morta. Fiz isso na hora de lavar o chão. Cheiro de podre e morte, com sangue velho e seco espalhado em uma camisa e uma calça. Senti nojo, vomitei um pouquinho no começo, mas depois já fui me acostumando. Pior que o cheiro de sangue era o cheiro que já começava a vir do mercado municipal. Frutas podres, sangue de mortos e cocô de urubus. Sim, existem urubus no mundo dos desmortos e eles se espalham por todos os lugares com grande aglomeração de sujeira. Pensei no quanto seria higiênico eu encontrar outra casa para mim, em um lugar mais longe, perto da praia, ou coisa parecida, mas, por enquanto, não seria o ideal, já que teria que me deslocar para muito, muito longe, e não passava pela minha cabeça uma longa caminhada. Enquanto isso, a única coisa que fiz foi colocar ratoeiras por toda a casa, ao menos para evitar uma infestação de ratos e acabar morrendo de raiva, e não de mordida de zumbi. Ainda penso em qual das duas mortes seria pior...

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Capítulo 6

Buscar novos significados para a vida. Você já não tem mais família, o que te resta? Sobreviver. Para isto, neste momento, me sobrou apenas uma 9 mm e uma mochila no meio do nada que eu acho que é a divisa entre Minas Gerais e São Paulo. Na estrada há quase um ano, em um caminho que, se tiver tempo, ainda contarei com mais detalhes para minha própria memória, que começa a me preocupar, arranjei namorada, inimigos, amigos, novos irmãos e uma fé renovada em uma humanidade que, ainda que morta, é interessante à sua maneira. Mas, voltemos ao supermercado, minha primeira aventura fora dos muros de casa em um mundo tomado por pessoas que só querem comer miolos.

Uma das vantagens da vida zumbi é que você não paga mais impostos. Não tem ninguém para cobrar seu fornecimento de água e energia elétrica. IPTU, então, quem vai se preocupar com isso? No entanto, como as linhas de fornecimento não foram comprometidas, você continua recebendo energia, internet, água, tudo normalmente. A programação de TV ainda faz falta, mas na busca por sobrevivência, a última coisa que você quer ver é o programa do Jô, e o que mais o Jornal Nacional poderia nos oferecer?

O verdadeiro entretenimento neste mundo de desmortos é encontrar outra pessoa viva e lembrar de como era o mundo antes de tudo terminar. Como podemos dar tão pouca importância para os relacionamentos que temos? É piegas e extremamente clichê, mas é nestas horas que lembramos das coisas pequenas da vida, dos pequenos fatos, de quando meu pai me ensinava a andar de bicicleta, ou minha mãe jogando o chinelo em mim para que eu estudasse direito. Meus pais, a esta hora, deveriam estar mortos. Pena. Vamos deixando para trás o que é importante e acabamos por escolher outros caminhos. Damos prioridades para o trabalho, para pessoas que não merecem nosso amor, e, no fim, tudo o que nos sobra é cravar uma faca no que restou do seu filho, uma cabeça sobre um corpo putrefato e orar para quew ele sinta o mínimo de dor possível. Sim, momentos mágicos, depois de um apocalipse, acabam sendo substituídos por amargura e dor.

Vivemos para o outro, para o próximo. Em um mundo zumbi, não temos mais isso. Quando falo sobre rever as prioridades, adquirir uma nova perspectiva da existência, falo sobre isso. Em um mundo onde ninguém te vê como nada mais que um pedaço de carne que carrega miolos que podem virar comida, você precisa buscar novos significados, novos elos, que comprovem o que restou da sua humanidade.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Capítulo 5

Ainda hoje, diante do grupo que me cerca nesta estrada inóspita, lembro dos olhos de minha esposa. Tive outro amor depois de sua morte, mas os olhos de Lenora são eternos. Ninguém nunca me havia olhado com tamanha ternura, carinho e paixão quanto ela. Por isso foi tão difícil esfaquea-la até a morte.

No entanto, pensei que era o melhor a fazer. Sou um homem extremamente prático. Como pastor, sempre fiz escolhas difíceis e aprendi a não tomar decisões de acordo com as opiniões formadas à minha volta. Para qualquer pessoa, matar a própria esposa seria um desafio. Eu estava esfaqueando meu próprio coração quando cravava a faca de cozinha no seu rosto, espalhando sangue desmorto por toda a cozinha, mas não parei por causa disso. Ela precisava ir, e ainda que estivesse sofrendo muito com a dor que lhe infligia, eu não podia parar. Só parei quando aqueles olhos baços, que em nada lembravam os olhos castanhos dela perderam o resto do viço que tinham ainda. Eu a chamava de Capitu, aquela de olhos de ressaca, e citava Machado sempre que a queria elogiar.

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.

_Humor vítreo.

_ O que?

_ É o fluído misterioso dentro dos olhos de ressaca. Humor Vítreo.

Tinha me dito isso em nosso terceiro ou quarto encontro, ainda em São Paulo, dentro de um vagão lotado do metrô. Eu era pobre, como sempre fui, mas éramos ambos vivos. É. Mata-la não me fez nada bem.