terça-feira, 14 de junho de 2011

Capítulo 14

Encaixei na mochila o machado e peguei os dois cacetetes. Um em cada mão, são mais leves, e, apesar de não matar os zumbis, os afastam indefinidamente, e isso era o bastante para a manada que estava lá fora. Com o barulho da briga alguns deles vieram roçar na porta da delegacia e já se podia ouvir os sons que faziam. Tentei encontrar outro caminho, por trás, uma saída dos fundos, mas nada. Um muro alto, que não dava para escalar a tempo. Subi as escadas no andar superior a procura de uma janela de escape. Abro a janela e vejo a multidão desmorta sob mim. Uns urubus no parapeito onde estou começam a fazer barulho, os faço voar batendo neles com os cacetetes. O cheiro é indizível. Uma mistura de carne podre com sangue velho e fumaça. Movimento-me devagar, sem fazer barulho, tentando escapar para a lateral da casa, de onde posso pular para a adega, onde vou pegar umas garrafas de cachaça e fazer uns coquetéis molotov. Ah, internet, eu te amo.

Saí pela lateral da casa, descendo a parede devagar, evitando fazer barulho. Todos os zumbis estavam forçando a porta da frente, que cede diante do peso deles. Com voracidade, os zumbis invadem a delegacia, à minha procura. Sou carne, alimento neste mundo enlouquecido em que me meti. Do lado de fora da delegacia, a fila ainda é grande, e eles se empurram para entrar. meu cheiro ainda deve estar forte lá dentro.

Ao meu redor, mais nenhum zumbi. a partir do momento em que todos eles convergem para um ponto, os demais fazem o mesmo. São atraídos pela manada. O grupo fala mais alto. Eis a coletividade Borg funcionando na Terra. Com todos os zumbis dentro da delegacia, consegui tempo para ir à adega e preparar meu plano de limpeza da área.

Entrei na adega e dei de cara com metade da dona, a Keila, uma moça de seus 30 anos, bonita e jovem, muito simpática que sempre separava o suco que eu gostava de tomar de manhã. seu corpo já estava podre, o que mostrava que fazia tempo que havia sido comida. reconheci o pedaço do rosto que ainda estava visível. As pernas haviam sido comidas e um dos braços também. todo o tórax e parte da barriga. algumas tripas ainda saíam e o crânio estava aberto. Sem cérebro, sem vida.Dei graças a Deus por ela não ter se transformado em um deles. Ela não merecia.

Mas, também, quem mereceria uma coisa dessas? Pensei nas pessoas que se transformaram nos monstros que invadiam a delegacia naquele momento. deveria haver crianças no meio daquele grupo, pais de família, donas de casa, aposentados, pessoas que viviam suas vidas, envoltas em seus problemas. gente comum. gente que amava, gente que tinha amigos, alguns tinham eventos combinados para o dia de hoje. carregavam as preocupações normais de cada um. Provas na faculdade, metas no trabalho, preconceitos, namoros de filhos. Aqueles necrófilos, comedores de cérebros humanos, eram, nada mais, nada menos, que pessoas comuns, que tinham expectativas, e que foram engolidas por um apocalipse, um evento de escalas bíblicas, que mudou suas rotinas, fez com que suas preocupações todas se mostrassem pequenas, mesquinhas e ávaras e, de repente, transformou tudo em morte e dor. Todos devem ter perdido entes queridos antes de serem transformados. Alguns podiam ter passado pelo mesmo que passei, enfrentando a própria esposa desmorta enquanto tentava sobreviver. Alguns devem ter tido que matar os próprios filhos.

Depois disso, e as preocupações? E a prova da faculdade? E as metas no trabalho? Nada mais valia ou importava no mundo que não a sobrevivência. Não vi como a coisa começou, mas sabia que, se não me cuidasse, eu ia acabar como qualquer um: desmorto, caminhando sobre a terra em busca de cérebros. Não queria isso para mim. Queria a preocupação com o pagamento do aluguel, as dívidas do cartão de crédito e o presente de aniversário do vizinho. Queria um mundo de volta, qualquer que fosse ele, eu queria viver.

Peguei duas garrafas de aguardente, embebi dois pedaços de estopa e ateei fogo. Todos os zumbis haviam entrado na delegacia. Na porta da casa, um deles ainda se virou a tempo de tomar uma garrafada na cara. O fogo se espalhou pelo líquido, que se espalhou sobre ele, queimando a podridão da sua carne. ele ainda tentou andar para algum lugar, mas em alguns minutos, caiu no tapete no caminho dos outros zumbis, impedindo sua saída. O fogo se espalhou pelo carpete, pelos móveis, cortinas e, em alguns minutos, tomava todo o andar térreo da casa. Alguns zumbis ainda conseguiram sair, cobertos de fogo, mas logo caíam no jardim da frente da delegacia, que começou a ficar cheio de corpos carbonizados.

Durante um tempo ainda fiquei olhando a delegacia pegando fogo, queimando de verdade, com todos aqueles desmortos dentro. Virei as costas e fui andando para casa. Queria restabelecer alguma humanidade em mim. Peguei algumas garrafas de vinho na adega para tentar comemorar alguma coisa. Se não comem orar, ao menos tomar um belo porre para tentar esquecer que a humanidade não existia, e que a sociedade, como a conhecia, nunca mais seria restabelecida.

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