Ainda hoje, diante do grupo que me cerca nesta estrada inóspita, lembro dos olhos de minha esposa. Tive outro amor depois de sua morte, mas os olhos de Lenora são eternos. Ninguém nunca me havia olhado com tamanha ternura, carinho e paixão quanto ela. Por isso foi tão difícil esfaquea-la até a morte.
No entanto, pensei que era o melhor a fazer. Sou um homem extremamente prático. Como pastor, sempre fiz escolhas difíceis e aprendi a não tomar decisões de acordo com as opiniões formadas à minha volta. Para qualquer pessoa, matar a própria esposa seria um desafio. Eu estava esfaqueando meu próprio coração quando cravava a faca de cozinha no seu rosto, espalhando sangue desmorto por toda a cozinha, mas não parei por causa disso. Ela precisava ir, e ainda que estivesse sofrendo muito com a dor que lhe infligia, eu não podia parar. Só parei quando aqueles olhos baços, que em nada lembravam os olhos castanhos dela perderam o resto do viço que tinham ainda. Eu a chamava de Capitu, aquela de olhos de ressaca, e citava Machado sempre que a queria elogiar.
“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.
_Humor vítreo.
_ O que?
_ É o fluído misterioso dentro dos olhos de ressaca. Humor Vítreo.
Tinha me dito isso em nosso terceiro ou quarto encontro, ainda em São Paulo, dentro de um vagão lotado do metrô. Eu era pobre, como sempre fui, mas éramos ambos vivos. É. Mata-la não me fez nada bem.
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