sábado, 24 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 14 (Final)


Avançamos pela rua que dava acesso ao prédio de Renata. Perdi a conta de quantos zumbis haviam sido mortos naquele dia. Uns cem, presumi. Eu mesmo havia matado uns quinze, vinte, mais zumbis. Quantos cada um de nós não tinha conseguido destruir? Não sei. A partir deste momento minha mente agarrou apenas alguns flashes. Não recordo bem do que aconteceu, de como aconteceu. Lembro do céu azul de verão. Lembro do rosto de Renata sobre mim. Lembro de Claudemir e Alberto me carregando. Lembro de ouvir tiros. Depois, silêncio e ais nada.

Em 24 horas eu havia matado cerca de trinta zumbis, doado quase meio litro de sangue, atravessado a cidade debaixo de um sol a pino e não havia comido nada. Minha pressão tinha caído violentamente.

Quando abri os olhos era Renata que estava em cima de mim.

_ Você está bem?

Os cabelos longos dela tocavam no meu rosto.

_ Seus cabelos me dão claustrofobia.

_ Mas você gosta?

Ela cheirava a shampoo e perfume caro. Pequenos luxos que uma mulher podia se dar mesmo em meio ao caos zumbi.

_ Muito.

Já era noite e os outros dormiam nos quartos.

_ Quanto tempo eu apaguei?

_ Umas dez horas. Foi o bastante para eles darem uma dispersada. Olha lá em baixo.

Levantei devagar, sentindo dor em todo o corpo, especialmente no braço de onde havia sido tirado o sangue. Renata me deu apoio. Estávamos no décimo primeiro andar. Olhar para baixo me deu vertigem a princípio, mas consegui controlar. Sentia fome, e estava febril. Lá em baixo, na rua, nada mais que dez ou onze desmortos.

_ Como está o Marcos?

_ Bem. Ele sobreviveu.

_ Isso me deixa feliz. E você? Como está?

_ Feliz que você está bem.

_ Eu estou feliz que você está aqui.

Toquei o rosto dela com as costas da mão. Ela correspondeu ao afago. Fechou os olhos e entreabriu os lábios. Me aproximei devagar.  Brisa que vinha da janela trazia o cheiro salgado do mar, e não o cheiro podre dos desmortos. As estrelas brilhavam no céu enquanto as luzes lá em baixo piscavam incertas. Ao longe, a estação ciência brilhava. Tinha esquecido de como esta cidade era bonita e de como ela havia me atraído para ela.

Beijei Renata devagar, sentindo os lábios dela. Deixei que todas as ideias e culpas sobre Lenora e Augusto se fossem. Havia um mundo aqui fora, um mundo que, apesar de desmorto, ainda vivia, pulsante, gritando de vontade de ser reconquistado pela humanidade, ou pelo que houvesse sobrado dela. Todo um mundo de sensações e novas descobertas que precisava ser tomado de volta. Pensava nisso enquanto meus braços circundavam o corpo de Renata contra a luz da lua que vinha da janela, acompanhada do cheiro do mar que uma brisa distante trazia do oceano. Uma brisa limpa daquele cheiro pobre lá de baixo. É. João Pessoa era linda demais.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 13


Eu e Renata íamos na frente enquanto Janaína e Claudemir iam no meio, com o segurança consolando a enfermeira e Alberto fechava o grupo com uma carabina. Renata quebrou o silêncio.

_ Como está o outro Marcos?

_ Bem. Quando os deixei no seu apartamento ele estava caminhando. Cambaleante, mas consciente e seu sangue ainda cheirava a metal velho, como o sangue de um ser vivo.

_ E você? Como está?

_ Você está perguntando por causa daquela explosão lá atrás? Eu precisava daquilo. Precisava sentir que fazia isso por outras razões além de apenas sobreviver. Nem que fossem os motivos mais torpes, como vingança ou saciar uma sede de sangue, eu preciso de mais do que “sobreviver”. Só isso não será o bastante para mim.

_ Mais do que sobreviver... Sim, precisamos disso. Você acredita que poderemos construir algo a longo prazo na estação?

_ Acredito que sim. Podemos começar devagar, limpar as ruas em volta, cercar o lugar, aumentar a segurança. Entrar nos prédios em volta e limpa-los, para podermos viver neles. Já notou como os muros naqueles prédios são altos? O medo de bandidos foi a melhor arma que os arquitetos nos deixaram para nos proteger. Acredito que em um ano conseguiremos limpar uma área de dez ou doze quarteirões, cercando tudo para que eles não invadam.

_ Você faz planos para o futuro. Mas e o presente? Como será que faremos para sobreviver?

_ Nós lutamos, Renata. Nós podemos ter perdido a guerra contra os zumbis, mas não vou aceitar perder a batalha contra o desânimo e a desistência. Nós vamos viver. Custe o que custar, nós vamos viver.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 12


Antes que eu chegasse no local da batalha, um dos zumbis chegou por trás do grupo e atacou a maca que estava no chão, mordendo o pescoço de Marcos. Janaína estava muito entretida com uma menina zumbi que tentava morde-la que mal ouviu quando o instrumento que monitorava o coração começou a acelerar, dando sinais sonoros em intervalos cada vez menores de tempo. Quando virou-se, três zumbis devoravam a carne de Marcos, mordendo seu torax, seu pescoço e seus braços. Ela gritou e voltou-se para o corpo caído, batendo nos três zumbis, dois homens e uma mulher. Eu estava a cerca de 40 metros do conflito, atirando com cuidado com a carabina, não me permitindo perder um tiro sequer, lembrando do treinamento do coronel Pacheco para o Haiti. É. Eu menti para Renata sobre o treinamento militar. Eu tinha, sim, dado alguns tiros em minha vida, Sabia manusear uma arma.

_ Busque sentir seu coração. Atire entre as batidas do seu coração. Quanto mais seu coração estiver sob controle, mais fácil será atirar e acertar. Mais eficiência se consegue com autocontrole, dizia o velho coronel.

Autocontrole era algo fundamental para a sobrevida em um mundo de desmortos. Assim como era importante ter autocontrole com as finanças pessoais, era importante ter autocontrole sobre as balas naquele momento. Por mais munição que tivéssemos, e tínhamos bastante, ainda precisávamos encarar um longo caminho até o local que havíamos deixado limpo.

_Autocontrole é o caralho.

Coloquei a carabina nas costas, puxei o facão e corri na direção deles gritando.

Eu precisava de uma descarga de violência gratuita plena, por isso, deixei as mochilas no chão e segurei o facão. Era um modelo do exército, com lâmina reta de 45 centímetros de comprimento, de aço resistente. Eu havia afiado na noite anterior, antes de os zumbis conseguirem entrar no segundo andar do shopping. Ele já havia devolvido diversas almas para o inferno e ainda me acompanharia até o final da jornada, quando, cercado, e com pouca munição, posso recorrer a ele para sobreviver.

Apesar da quantidade alta de zumbis, vi que a situação estava sob controle e comecei a cortar pelo prazer. Fui, durante alguns minutos, um psicopata, arrancando braços e quebrando espinhas de desmortos, apenas para ve-los caídos e sem condições de conseguir nos pegar. Matar era um detalhe, eu queria ver sangue preto de podre se espalhando por todos os cantos.

Me dei o prazer da violência. Matei minha sede de agressividade, fiz coisas inomináveis apenas por fazer. Não minto que aquilo me deu um raro e contínuo prazer. Mas os alvos estavam mortos, então não sentia culpa por tanto. Queria vingar Patrícia, vingar Lúcio, vingar Verônica, vingar Lenora, Augusto, cada um dos que eu vi morrendo. Cada um dos que não poderia mais aproveitar as coisas pequenas do mundo.

Abri a barriga de uma senhora e peguei a ponta de suas tripas. Arrastei até alcançar dois zumbis, que eu amarrei com os intestinos da mulher antes de matar. Ela se arrastava na direção do corpo de Marcos, mas esmaguei seu crânio com minha bota de alpinismo, com biqueira de aço que eu tive o prazer de enfiar nas costelas de outro zumbi que veio na minha direção. O facão cortou sua cabeça na perpendicular, separando o cérebro e terminando o corte na altura do lóbulo da orelha direita do zumbi. Foram dez mortes minhas só naquela explosão. Eu era apenas fúria e violência, e queria sentir que podia controlar aquilo, mesmo na situação mais terrível.

Os outros sobreviventes ficaram me olhando enquanto eu cometia aquela atrocidade. Coberto de sangue e podridão, eu não queria falar nada. Voltei, peguei as mochilas do chão e caminhei na direção deles. Renata, assustada, estava de queixo caído.

_ Patrícia está morta.

Para eles esta explicação foi o bastante.

Caminhei na direção de Janaina que chorava ao lado do corpo semidevorado de Marcos. Ele tinha os olhos abertos e uma expressão de terror e dor impregnada neles. Coloquei a mão no ombro da enfermeira e sobre a cabeça do moribundo. O sangue vertia das feridas. Eu sabia que Marcos sentia todas as dores, mas não podia se expressar.

_ Filha, há momentos em que temos que tomar decisões drásticas. Abandonar pessoas no caminho é uma destas decisões. Você consegue isso?

Ela fez que sim com a cabeça.

_ Não se culpe. Você fez o seu melhor. Cuidou dele por tanto tempo, entregou sua vida a ele por tanto, passou por tanta coisa para que ele pudesse estar seguro que agora que eu sei que ele vai reconhecer e entender sua decisão. É o melhor para ele.

Entreguei o 38 na mão de Janaína e me afastei para compor o perímetro junto de Renata Claudemir e Alberto. De costas para a cena, apenas ouvi o tiro e o choro da enfermeira que crescera. Ela fez o que tinha que ser feito. Precisávamos seguir em frente. Sem olhar para trás e nem pensar no que aconteceu.

Livro 4 - Capítulo 11


O shopping parecia estar em uma daquelas promoções especiais, com descontos absurdos. Cercado de pessoas, com as portas abarrotadas, parecia véspera de dia das mães ou natal. Os corredores intransitáveis, as lojas cheias, o inferno na terra. Porém, na época, para aplacar a sanha voraz dos que nos cercavam, bastava usar o cartão de crédito. Agora, só um tiro na cabeça resolvia nossos problemas.

Troquei o revólver pela carabina que Patrícia estava carregando. As balas 38 serviam ali também, e o pente era maior. O rifle 38 Garand M-1 era uma das armas que a Polícia Militar brasileira usava sempre como segunda opção, por ser uma carabina semiautomática, que acabou sendo substituída por submetralhadoras e armas do tipo. Com uma mira telescópica poderia facilitar muito o trabalho de alguém que quer ficar de tocaia matando zumbis. Era antiga, dura, mas ainda dava um caldo em muita arma nova que havia no mercado.

Empunhei a arma e atirei contra um dos desmortos que estava na minha frente. Muito mais estável que a Glock e tão eficaz quanto. Decidi que aquela seria minha arma primária a partir de então. Fácil de encontrar munição, fácil de limpar e lubrificar, fácil de empunhar. A arma perfeita para efetuar um massacre.

Um massacre que, de longe, eu via acontecer no estacionamento do shopping enquanto corria naquela direção. Via Renata atirando em zumbis com sua 12. Enquanto estavam caídos, Claudemir e Alberto cortavam ou perfuravam as cabeças deles. Porém, mais e mais zumbis chegavam perto da maca de Marcos enquanto Janaína tentava mante-lo seguro com um bastão de beisebol.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 10


Me afastei e comecei a gritar pelos zumbis no meio da rua junto com Patrícia. Atirávamos em alguns que estavam mais perto. Quando olhei direito, a manada estava imensa, com uns oitenta, cem desmortos. Corremos na direção da praia e viramos à esquerda, voltando para o Retão de Manaíra, ainda chamando a atenção dos desmortos. Só ficaria satisfeito quando eles saíssem da frente do prédio de Renata, deixando Marcos e Angélica em paz.

Os zumbis vieram atrás de nós por uma quadra até o retão, que estava coberto de carros. O grupo acabaria dispersando com aquelas barreiras todas e ficaria muito mais fácil combate-los. O problema é que todos os acessos ao prédio de Renata estavam lotados de desmortos. Eu precisava pensar em uma rota alternativa antes de voltar para o shopping, que eu via ao longe, uma grande caixa cinza perto da BR 230.

Entre os carros os zumbis começaram a ficar mais lentos do que nós. Alguns até desistiam da perseguição e uns viraram as costas simplesmente indo embora. Porém, eu e Patrícia ainda estávamos sendo cercados por eles. Seguimos por uma quadra, duas até que eles começaram a sair da rua que cruzava a altura que nós estávamos. Não havia para onde correr. Andávamos por cima dos carros, pulando de um para o outro, na esperança de conseguir nos livrar dos mortos, mas não conseguimos.

Ao longe, vi o shopping, a nossa única esperança de fuga. Quando olhei para trás, Patrícia se entretia em chutar o rosto de um dos zumbis enquanto atirava em outro que estava logo ao lado. À minha volta, cinco zumbis começavam a subir na carroceria de uma caminhonete para onde eu estava indo. Pulei no meio deles com o facão em mãos. Senti uma mordida atingindo o colete a prova de balas na altura do ombro enquanto cortava o alto do crânio de um zumbi e empurrava o outro com o pé. Dois estavam longe o bastante para me dar tempo de cuidar do mordedor, que recebeu uma facada rachando a cabeça ao meio.

Os outros dois zumbis chegaram perto. Um teve o rosto arrancado pela lâmina do facão enquanto o segundo recebeu um chute no estômago que o jogou de costas no chão. Cravei o facão entre seus olhos e segui. Perdi muito tempo naquela batalha tola, mas aprendi que precisava de sangue frio se quisesse sobreviver naquele mundo. Fui conferir a mordia que havia recebido no ombro. Não havia atravessado sequer a primeira camada de tecido do colete.

Corri sobre os carros com Patrícia logo atrás, até ser surpreendida por um zumbi que puxou seu pé e a derrubou na carroceria de um sedã.

A partir daí tudo parecia acontecer em um daqueles pesadelos onde estamos presos, tentando correr, mas não conseguimos. Vi seu corpo caindo em câmera lenta sobre o capô do carro e o rosto romper o para-brisa e ficar coberto de sangue. Ela tentou levantar atordoada, mas vi quando o zumbi que a havia derrubado subia por cima dela, estendendo suas mãos imundas sobre a pele branca da menina. Aquela coisa parecia procurar o local com carne mais saborosa e mordeu a parte posterior da coxa de Patrícia, arrancando um pedaço grande. Ela gritou alto, quebrando o silêncio daquele dia infernal. Eu não podia fazer mais nada. Patrícia estava condenada.

Mas ela não se deu por vencida. Virou-se para cortar a cabeça do desmorto enquanto seu sangue escorria da coxa. A mordida havia sido profunda, o músculo havia se rompido e a artéria femoral estava aberta, jorrando sangue. Seu tempo de vida se abreviava demais.

_ Vai embora, eu seguro eles o quanto puder. Vai! Tem gente precisando de você.

_ Não posso te deixar, Patrícia. Não posso te deixar aqui.

_ Pode sim. Saiba que eu não me entreguei. Eu lutei até o final para viver. Avisa eles que eu lutei, que não era nenhuma patricinha maluca que só gostava de consumir. Eu também tinha um coração e uma mente e você conseguiu enxergar isso.

Quando disse isso foi mordida por outro zumbi na barriga. Ela atirou na sua cabeça e em mais dois que vinham em sua direção. Tirou a mochila das costas com os restos de força que tinha e lançou para mim antes que uma mulher arrancasse um pedaço grande do seu braço. Seu rosto havia sido tomado pela dor e pelo sangue e seus gritos poderiam ser ouvidos a quilômetros de distância.

Chorei enquanto corria contra o fluxo de zumbis que se acotovelavam sobre o corpo de Patrícia, rasgando sua pele, arrancando sua carne, seus órgãos e membros, eviscerando a jovem. Olhei para trás apenas para ver o enxame de desmortos que disputavam os pedaços dela. Era quase uma da tarde, um sol a pino e a pessoa que aquele mundo mais havia transformado não vivia mais.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 9


Segurei Marcos no chão.

_ Marcos, me ouve. Olha em volta. Estamos cercados de zumbis e estamos perto do local de encontro. Eu preciso que você vença a dor e ande do meu lado. Eu sei que é traumático, mas eu não quero te deixar aqui. A gente já perdeu gente demais. Levanta e vem comigo. Você consegue?

Ele me olhava em choque enquanto Angélica gritava os piores impropérios para mim. Eu nem a olhava. Marcos colocou o cotoco de braço por cima do meu ombro. Senti o cheiro de metal velho característico do sangue vivo e fiquei feliz. Conseguimos fazer Marcos viver até agora, não podia permitir que morresse agora.

Corremos ao longo das duas quadras que faltavam. Marcos ia se apoiando em mim, quase não conseguindo andar. Os zumbis estavam muito próximos e eu usava o facão para eliminar alguns que se aproximavam mais. Na quadra do prédio de Renata, as coisas começaram a ficar mais calmas. Patrícia pegou a arma de Angélica, uma pistola .40 e começou a atirar com ela. Certeira. No portão do prédio, coloquei Angélica e Marcos para dentro. Tentei puxar Patrícia para dentro, mas ela sabia o que eu queria fazer e queria fazer isso junto comigo.

_ Você tem certeza?

Ela fez que sim enquanto atirava em zumbis, eu fechei o portão.

_ Subam, se protejam, enquanto eu e Patrícia vamos afasta-los daqui.

_ Isso não te isenta do que você fez com meu marido, Ernesto.

_ Nem quero que me isente. Na hora certa vamos discutir isso, ok?

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 8


Angélica estava muito preocupada com o marido para pensar em dar tiros ou fazer qualquer coisa. Ela olhava para o meu colo chorando enquanto andávamos. Do corte ainda escorria sangue e eu fiquei preocupado sobre o quanto aquilo podia atrair os desmortos. Me dei conta de que o cheiro os atraía quando, ao invés de sair das ruas por onde nós já havíamos passado, eles começavam a sair de lugares onde ainda não haviam tido contato visual conosco. E vinham farejando. O sangue de Marcos começou a atrai-los para nós.

_ Angélica, preciso que você mate os zumbis que vierem da frente. Se não fizer isso, Marcos e eu vamos ficar expostos e acabaremos morrendo.

Ela concordou com a cabeça e eu pedi para Patrícia fazer o mesmo e começar a atirar nos zumbis que estavam na frente. Eu precisava de um plano B, pois quando chegássemos ao prédio de Renata os desmortos nos veriam, acompanhariam para dentro e acabariam invadindo o prédio e nos matando. E nós já estávamos chegando lá.

Foi quando Marcos acordou. E acordou gritando de dor e se contorcendo no meu colo, o que levou a nós dois para o chão.

Angélica, desesperada, largou a arma e correu para o marido, que rolava no chão sentindo dor. Olhei para ele, já havia passado horas desde que ele fora mordido e não havia qualquer sinal de que estava infectado. A amputação funcionava, afinal de contas.

Peguei a pistola e comecei a atirar junto com Patrícia, que vi que já estava se contendo, usando menos balas. Seu 38 já não tinha tantos tiros disponíveis. Precisava tirar todos dali o mais rápido possível.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 7


Patrícia começou a ficar para trás com o intuito de atirar nos zumbis que se aproximassem mais. Das outras ruas, conforme o grupo avançava, vinham outros mortos, que aumentavam a manada que nos seguia. Na terceira quadra, a manada já era de cerca de 50 desmortos seguindo-nos. Patrícia atirava em alguns que estavam mais perto. Me perguntei como ela havia desenvolvido aquela pontaria.

Depois da nossa conversa, fiquei pensando em toda a agressividade que, por conta da imagem de boa menina, ela teve que guardar para si. A via atirando sem piedade, com uns olhos frios e senti medo de que ela viesse a fazer alguma coisa contra si mesma. Senti medo que ela não quisesse mais viver, que não sentisse mais vontade e necessidade de seguir adiante.

Nunca sabemos até quando nossa vontade de sobreviver pode ir. Todos temos limites, e em uma situação como a que estávamos vivendo, os que tinham limites mais baixos eram os que estavam nos perseguindo. Pessoas que se entregaram, que morreram, foram pegas de surpresa por entes queridos que haviam sido convertidos em formas desmortas de comer carne viva. Gente cujas vidas tinham sido provadas e que não haviam passado no teste de sobrevivência pelo qual Patrícia, naquele momento, passava.

Eu ainda tinha muitas dúvidas em relação a muitos elementos do grupo. Como Marcos reagiria quando acordasse? Já não carregava peso demais com duas mãos para o fazer com uma só? Angélica me odiava naquele momento, eu sabia, sentia, mas sabia, também, que, assim que estivesse segura, pensaria bem no que estava dizendo naquela hora.

Mas quem ainda mais me preocupava era Renata. Eu sabia que a postura de segurança era a mesma que eu usava quando estava na defensiva e ela estava na defensiva. Patrícia, então, aquela frieza conquistada nas últimas horas teria um preço para seu coração e este preço poderia ser o descuido proposital, um desapego da vida. Dores de amor são comuns, mas neste mundo de desmortos são as dores que mais machucam. Mais que qualquer mordida.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 6


Peguei Marcos pelo ombro. Ele estava meio desacordado, ainda sentindo o efeito do anestésico que Janaína havia ministrado. A meta era sair pelo estacionamento, pegar a rua lateral do shopping, descer a paralela do Retão de Manaíra até perto da praia e parar no prédio onde Renata morava, subindo até o segundo andar e trancando os sobreviventes lá até a chegada do segundo grupo. Não podíamos ter baixas naquela operação. Em pouco tempo, coisa demais havia acontecido, e parecia que cada vez que pensávamos em sair, mais gente nossa morria ou se feria.

Patrícia e Angélica foram adiante, dando cobertura para a nossa saída. As duas na minha frente e do Marcos. Deixei as armas de fogo no coldre e fui carregando o facão. Nossa missão tinha que ser o mais furtiva possível, com o mínimo de zumbis notando nossa saída. Tínhamos que chegar ao prédio de Renata, que ela já havia limpado e que deixara fechado para evitar invasões.

Atravessamos o portão do estacionamento e parecia que todos os zumbis da cidade já haviam confluído para o shopping Manaíra, que estava cercado e cheio de desmortos. Seguimos pela rua lateral quando dois desmortos nos viram e começaram sua sinfonia de gemidos. Outros ouviram o som e começaram a se virar. Quando entramos na rua, cerca de vinte desmortos nos seguiam, enquanto outros, ainda, começavam a se virar para ver a movimentação do lado de fora do shopping. Nossa furtividade acabara ali.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 5


Reuni todo o grupo no patamar entre os andares.

_ Vamos separar dois grupos. Um grupo será liderado por mim. O outro, por Claudemir. O primeiro grupo vai sair ao meio dia. Precisamos que seja um grupo leve, mais rápido que o segundo, pois vai chamar a atenção dos desmortos lá fora enquanto tiramos a maca do seu Marcos daqui de dentro. Eu vou liderar este grupo, que vai com Marcos, Patrícia, eu, e Angélica. Claudemir, você e o Alberto carregam a maca do seu Marcos enquanto a Renata e a Janaína dão cobertura para sua saída. Assim que deixar o grupo um em segurança, eu sigo o caminho de volta para complementar a defesa de vocês. Vamos sair daqui mais ou menos meio dia. Não podemos esperar mais do que isso. Não posso permitir o risco de termos mais uma noite aqui. E eu não sei até quando estas portas aguentam.

Claudemir pediu a palavra.

_ Não vamos desperdiçar balas, ok? Tiros só funcionam na cabeça, ou, quando é uma espingarda, como a da Renata, para afastá-los. Então, dêem preferência para usar os bastões, os facões e as armas de combate corpo a corpo. Eu e o Ernesto vamos lá fora dar uma limpada no terreno. O que acha, Ernesto?

_ Vai ser um passeio no parque.

Eu e Claudemir vestimos os coletes a prova de balas e fomos para a porta de baixo. Dos duzentos zumbis que estavam lá fora restaram apenas vinte, bastante dispersos, espalhados pelo estacionamento. Os outros já haviam entrado no shopping pelas portas da frente. Nos preparamos e saímos. Os primeiros foram fáceis. Sem muito desgaste, conseguimos matar uns seis que estavam mais próximos. Renata se juntou a nós na matança e logo conseguimos eliminar mais uma grande quantidade deles. Já era quase meio dia e o primeiro grupo tinha que sair.

Matar zumbis não era um desafio grande, quando estavam isolados uns dos outros. Sozinho, um zumbi não oferece grande risco. Lento, motivado pela fome, um zumbi sozinho pode ser morto com certa facilidade. Claro que, para toda regra, existe uma exceção, e neste caso a exceção são os corredores. A força, agilidade e resistência de cada zumbi é determinada pela pessoa que ele foi em vida. Se o cara era lutador de jiu-jitsu, o zumbi em que se transformou será forte. Se era uma senhora de idade, será fraco.

A ideia de lentidão que os caminhantes passam será facilmente contrariada quando você encontra uma manada pela frente. Ao que parece, quando em grupo, esta peste é mais motivada do que sozinha, como se a força da coletividade fizesse diferença nesta hora. O slogan funciona com eles, e desmortos unidos jamais serão vencidos.

Descobri que só há duas maneiras de mata-los: acabar com o cérebro, especialmente com a parte central dele, o que seria o cerebelo, que controla as funções motoras mais básicas. Se isto é um vírus, ou algo assim, é ali que se concentra. A outra forma é queimando, até que o cérebro torre de dentro para fora. Eles não param de andar porque atiramos em suas pernas, e quando acertamos na espinha, eles podem parar, mas não morrem, e suas cabeças, com suas mandíbulas funcionais, ainda oferecem risco de vida para quem passar por perto.

Engraçado como Sun Tzu sempre esteve certo sobre a questão de conhecer o inimigo para poder vence-lo. A guerra foi perdida por que ninguém sabia exatamente o que estava enfrentando. Quando se descobriu, e se entendeu quem eram estes seres, ficou muito mais fácil derruba-los. Eles ainda eram perigosos, mas já poderiam ser derrotados.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 4


O relógio de Claudemir marcava dez horas da manhã. Marcos não dava sinais de melhora. A febre continuava alta e ele não acordava. Ainda não tínhamos contado o plano para os outros quando Patrícia chegou perto de nós.

_ Precisamos sair daqui. Quero saber se vocês já têm uma ideia.

_ Temos sim. Queremos dividir o grupo em dois e sair separados.

_ Parece uma boa ideia. Um ferido em cada grupo?

_ Isso.

_ Não esqueçam de deixar os saudáveis bem divididos. Teremos mais chances se você e Claudemir chefiarem os dois grupos. Podem contar comigo para o que precisarem.

_ Sabemos que podemos, Patrícia. Eu posso falar com você em particular um minuto?

Ela fez que sim com a cabeça e subimos para o último andar da escada.

_ O que aconteceu dentro daquele provador?

_ Eu vi uma coisa. Uma coisa que eu não queria ver. Que eu já sabia, mas não queria acreditar.

_ O que foi.

_ Eu vi alguém que eu conhecia transformado em zumbi. Eu vi o André, meu namorado.

Fiquei em silêncio. Não estava sendo fácil para ela contar aquilo.

_ Eu sabia que as pessoas que eu conhecia tinham sido transformadas, mas ainda tinha esperança que ele estivesse em algum lugar me esperando, com um grupo de sobreviventes, assim como nós, sabe? Mas não. Ele foi mordido e o que é pior... a forma como eu o vi... era deprimente, sabe? A gente estava meio que separado, então, meio que em crise. De repente, quando vejo no provador o primeiro zumbi que queria me morder era exatamente ele. O André não podia ter morrido, não podia.

Ela começou a chorar. Aquela situação a estava transformando. Patrícia sairia daquilo de outra forma. Uma forma totalmente diferente da com a qual entrou.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 3


Olhei para os outros. Eles estavam tensos, cada um ocupado com algo diferente. Era marcante e emblemático o medo em seus rostos. Claudemir segurava o corpo de Marcos, que tremia em choque enquanto Janaína tentava suturar o seu braço. Alberto mexia em sua arma, vendo se estava carregada e funcional. Patrícia chorava calada enquanto Renata consolava Angélica, que também chorava olhando para Marcos, jogado, cheio de espasmos e cercado de sangue.

Além do medo, havia em seus rostos uma expressão de desesperança. As coisas não estavam bem para nosso pequeno grupo. Não havia muitas possibilidades de sairmos dali. Não tão cedo. A porta de cima, ainda que bem protegida, não suportaria por muito mais tempo, enquanto o caminho por baixo ainda estava cheio de desmortos.

Uma pequena luz começou a surgir quando os desmortos da porta de baixo começaram a desaparecer. Aos poucos a multidão foi dando lugar a grupos esparsos, e os grupos esparsos foram se dispersando ainda mais.

_ É só a gente ficar quietinho aqui, sem fazer barulho nem nada. Daqui há pouco eles desaparecem, eu disse.

_ A gente vai precisar monitorar o caminho por outro lugar. Alguém vai ter que reconhecer o cenário, analisou Renata.

_ Não podemos sair daqui com duas pessoas desacordadas. O Marcos vai ter que andar, ou o outro vai ter que sair do coma. Acho que isso não vai acontecer, disse Claudemir.

Ainda olhando pela janela, respondi.

_ Vamos ter que nos dividir em dois grupos. Cada um dos grupos fica com um dos feridos e a gente sai cada grupo em um momento. Nos encontramos no ponto um, no prédio da Renata. São apenas quatro quarteirões. Tem que dar certo.

_ Não sei. De repente, dentro do shopping tem quase mil zumbis. Aqui fora, mais uns duzentos. Quantos não devem ter conseguido sair de onde estavam? E porque acabaram confluindo para cá?

Lembrei do tiroteio na delegacia. Com certeza aquilo os havia atraído para o shopping.

_ Eles funcionam como uma manada, Claudemir. Quando ouvem um som, encontram a possibilidade de comer e acabam indo na direção deste som. Os outros, que não ouviram, quando vêem o grupo se dirigindo naquela direção, acabam indo junto. É assim que surge uma manada. Um grupo de quatro zumbis pode acabar virando um exército de duzentos, trezentos, ou até mil, como o grupo que estamos encarando agora.

_ Como você sabe tanto, Ernesto?

_ Sempre gostei de filmes de zumbis. Só nunca imaginei que eles seriam o grande motivo do apocalipse.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 2


Ao lado do corpo o braço jazia caído. Marcos não tinha mais a mão direita. Renata veio ao meu lado.

_ Você fez o que tinha que fazer.

_ Eu sei. Não me arrependo. O destino dele era se tornar um desmorto. Nunca desejaria isso para o Marcos. Não desejo isso para ninguém.

As horas passavam enquanto Janaína monitorava os dois Marcos. Um deles, em coma desde antes do fim dos tempos, não sabia sequer o que acontecia. O outro, acabara de perder o braço. Um braço que eu havia arrancado.

O corte havia ficado incerto, torto, cheio de falhas. Janaína puxava a pele como podia para fechar a ferida, deixando um duto aberto para escorrer o pus. Naquele momento era tudo o que tínhamos. Esperar não era uma opção, era o único caminho. Tínhamos que esperar. A porta de cima ainda chacoalhava com as batidas do exército de desmortos que esperavam por nós, mas estava bem fechada e lacrada. eles podiam tentar entrar, mas não conseguiriam.

Na porta de baixo, um pequeno postigo mostrava que o número de zumbis diminuía conforme a lembrança de que estávamos ali era cada vez mais distante em seus cérebros desmortos. Cada vez que olhávamos pela janelinha, víamos menos desmortos. Mas eles ainda estavam ali, rondando a porta, o estacionamento, esperando que a carne fresca saísse do forno e caísse em seu colo.

De tudo o que mais incomodava eram os gemidos. Um som grutural que parecia o eco vindo do fundo da alma e da humanidade de cada um dos desmortos. Será que ainda havia alguma humanidade em cada um deles? Olhar para seus olhos e encontrar o desespero da fome incontrolável me fazia questionar isso. Apesar de toda a lividez, ainda havia alguma emoção neles. Ainda que fosse a emoção por buscar a caça, esta emoção havia. Se isso era humano ou instintivo? Nunca saberei, e não insisti naqueles pensamentos naquele momento. Precisava pensar em um jeito de sair dali o mais rápido possível.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Livro 4 - Capítulo 1 - Ao meio dia encarnarei no teu cadáver


Havia sido um longo caminho até ali. Cerca de dois meses de apocalipse, a sobrevivência em um shopping, a perda de uma esposa, um filho, amigos demais, um assassinato, a perda da fé. E ali estávamos nós, um grupo de sobreviventes com um ferido, um homem em coma, uma mulher em choque e um líder incerto. Cercados por zumbis por cima e por baixo. Mais romerista que isso, impossível.

Com a situação começando a voltar ao controle, com as duas portas de acesso à escadaria vedadas e todos os zumbis de dentro mortos, Janaína começou a tentar conter a hemorragia no braço de Marcos. Angélica não olhava no meu rosto. Chorava no ombro de Patrícia enquanto a enfermeira usava todos os recursos que podia para conter o sangue que saía aos borbotões.

_ Angélica, você sabe qual o tipo sanguíneo do seu marido?

Angélica estava em choque.

_ Angélica, o tipo sanguíneo!

_ B positivo.

_ Alguém aqui tem sangue deste tipo? Ou O negativo? Vou dar uma de MacGyver e fazer uma transfusão.

Eu e Patrícia levantamos as mãos. Já tínhamos pelo menos um litro de sangue disponível ali. Assim que ela conseguiu conter o sangramento e ministrar os anestésicos no braço de Marcos, começou a complexa operação da transfusão direta.

Este tipo de transfusão consistia em um método direto. Uma agulha era inserida no braço do doador. A enfermeira fazia sucção com uma seringa até que o sangue fosse bombeado para as veias do receptor, que estava na outra ponta da mangueira. Ela fez isso no meu braço sem olhar para mim.

_ Você sabe se isso daria certo, perguntou Janaína para mim à parte, enquanto colocava a seringa em meu braço.

_ Não sei. Vi isso uma vez em teoria. Se a contaminação se dá por fluídos, o que eu acredito, tem que funcionar.

_ O indicador não tem nenhuma veia principal que bombeie sangue com velocidade. Vamos contar com isso. Eu não concordo com o que você fez, mas não vejo outra alternativa. Obrigado por ser seguro nas horas em que precisamos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Livro 3 - Capítulo 27 - Final

Ela pisou em uma poça de sangue que estava em um degrau e rolou até lá em baixo. Caiu aos pés de dois desmortos e havia deslocado a bacia. Ela gritava de dor, mas a minha preocupação ainda era outra.

Ela ainda estava muito longe de nós para que a tirássemos de lá. Marcos ficou desesperado e pulou entre os zumbis. Afastava-os com as mãos nuas, até um deles lhe arrancar um dedo indicador. Ele gritou, mas não parou. Os dois zumbis se abaixavam para alcançar a pele de Angélica quando ele chegou, jogando-os ambos para longe e pegando sua esposa no colo. Peguei Marcos pelo braço e arranquei meu cinto.

_ O que você está fazendo?

_ Você sabe o que estou fazendo.

Fiz um torniquete pouco acima do cotovelo dele e segurei o braço

_ Claudemir, me ajuda aqui.

Ele segurou Marcos, que gritava implorando para eu não fazer aquilo.

_ Você quer viver?

Ele olhou calado para mim.

_ Isso vai doer. Muito.

Baixei o facão com toda a força que eu tinha.

Ouvi o som rígido de metal quebrando osso e puxei. Baixei a segunda vez e Marcos não gritava mais. Em choque, desfaleceu no colo de Claudemir. Ainda bati seco mais duas vezes antes de conseguir arrancar o braço, que caiu, escorregando pela escada, espalhando sangue para todos os lados. Eu, respingado de sangue vivo, continuei avançando contra zumbis. Afastei Angélica dos desmortos que estavam caídos tentando come-la e cravei o facão na cabeça de um enquanto atirava no crânio do outro.

Angélica gritava e foi tentar segurar o marido. O sangue escorria do braço dele enquanto os desmortos não paravam de surgir. Eu continuei cortando cabeças até chegar à porta de saída que dava no estacionamento do shopping, do lado da BR. Alberto vinha comigo, matando zumbis na medida do possível. No estacionamento, o horizonte era coberto por desmortos. Não via nada além de cabeças de pessoas que um dia haviam vivido. A noite já assumia aquela tonalidade arroxeada de quando amanhece. A madrugada dos mortos começava a dar lugar à manhã dos vivos. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Livro 3 - Capítulo 26

Enquanto isso, lá em cima, tentávamos abrir caminho para descer pela escada que tínhamos mantido segura durante tanto tempo e que não era mais uma rota fácil. Entrei no corredor dela para saber se haviam muitos zumbis ali. Tinha uns trinta subindo. Nada que alguns tiros não dessem jeito. Puxei a glock e comecei a atirar. Na cabeça. O estrago era grande. Sangue e pedaços de cérebro para todo o lado. Quando troquei o primeiro pente, de dezesseis balas, quinze zumbis estavam caídos. Me senti como a menina de Omaha obtendo sucesso Na luta contra os desmortos.

Claudemir cercava a maca como podia e Janaína estava desesperada. Marcos e Angélica vieram atrás de mim, abrindo caminho para Alberto e Claudemir trazerem a maca. Renata fechava o grupo, cobrindo a retaguarda. Quando todos entramos, ela fechou a porta atrás de si. Nenhum desmorto nos pegaria de surpresa por trás.

Pela frente, no entanto, nada era garantia. Troquei a arma pelo facão e fui cortando cabeças e pescoços. O sangue formava poças no chão. Era mais uma matança de sucesso.

Até que Angélica escorregou.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 25

Conhecendo a alma jornalística, logo imaginei que ela seria a primeira a tentar fugir sozinha, e foi exatamente o que aconteceu. Ela correu por um corredor que julgou ser mais seguro que os outros, penando que ia conseguir sair do shopping. Desceu de um pulo para o andar inferior e foi cercada de desmortos. Conseguiu contra-atacar durante quase quinze minutos, abrindo caminho entre os zumbis. Porém, o corpo pede descanso, e o dela estava exaurido. Quando chegou em seu limite, o braço não aguentava mais bater em crânios de defuntos e ela acabou caindo no chão, exausta. Estava a cinco metros da porta quando recebeu a primeira mordida no tornozelo. A partir daí, a dor não importava mais.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 24

Patrícia era outra depois do evento na loja de departamentos. Coberta de sangue, a menina batia com violência nos desmortos, sem medo, apenas nojo, esgar e agressividade. Claudemir olhou para ela e olhou para mim sorrindo. O que acontecera nos provadores a transformara de adolescente quase inútil em sobrevivente determinada.

Situações extremas nos ensinam a crescer. Ser cercado por zumbis sem ver chance de sobreviver a fez entender o que realmente tinha valor na nova ordem mundial. O hype era estar vivo e, como modista que era, ela faria de tudo para estar por dentro da nova onda.

Janaína ia  monitorando os sinais do seu Marcos enquanto o carregávamos pelos corredores do shopping até a porta de saída nos corredores traseiros. Com a escada estreita que tínhamos lá, fiquei me perguntando como conseguiríamos carregar a maca com velocidade e eficiência. Não havia como, mas eu não queria lidar com esse problema até chegarmos lá. Bastava um perímetro bem montado à frente e atrás da maca para conseguirmos vencer o desafio dos três lances de escada.

Foi quando chegamos na porta que vimos que a situação era uma verdadeira calamidade. Os zumbis subiam pelo acesso. Nossa rota de fuga estava coberta de desmortos e nós ficávamos mais fechados a cada passo, a cada tentativa de avanço. Os desmortos haviam nos trancado em uma armadilha. Era madrugada e eu não via como poderíamos sobreviver.

Largamos a maca de Marcos no chão, pegamos as armas e partimos para cima. O perímetro tinha que ser estabelecido. Não tínhamos tempo a perder e nossas vidas estavam em jogo. Patrícia acompanhava Renata de um lado enquanto eu, Marcos e Angélica atacávamos do outro. Ao lado da maca estavam Janaína, monitorando o velho, Claudemir, rechaçando os zumbis que invadiam o nosso espaço e Alberto o ajudava pelo flanco. Não tínhamos uma estratégia. Eu não havia pensado em nada. Aquela situação era totalmente nova e imprevisível. Eu queria apenas que saíssemos de lá, que encontrássemos uma rota de fuga. Eu tinha medo, mas precisava me conter. Como diria Renata, eu não podia mostrar meu medo para eles.

Puxei o facão e cortei a cabeça de uma moça de pouco mais de vinte anos. a cabeça dela rolou até os pés de um velho que vinha se aproximando de onde estava Verônica...

Espere... Onde estava Verônica?

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 23

Era noite, madrugada. No relógio de Claudemir, duas da manhã. Havia um sereno leve na avenida e um ventinho fresco que batia. Para mim, que vinha do sul, aquilo não era frio. Para eles, era gelado. Nos reunimos da forma como pudemos perto da saída. Eu falei.

_ Vamos sair daqui todos juntos, de uma vez. Eu e Claudemir vamos começar carregando seu Marcos. Depois, o Marcos de Angélica e o Alberto assumem. Todos vão carregar bastões, facões ou alguma arma, entendido? Nada de tiros, pois isso os atrai. Vamos juntos. Ninguém se afasta, ninguém corre, todos vão andando. Se conseguirmos caminhar com tranquilidade, chegaremos à estação de energia em mais ou menos uma hora e meia. Lá dentro, vamos procurar um lugar para ficar, depois, vamos limpar o lugar e transforma-lo em nossa casa. Alguém tem alguma pergunta? Não. Ótimo, então vamos.

_ Peguem o que for essencial. Depois formamos equipes de busca para pegar o que faltar. A priore, apenas o que é essencial.

Cada um fez sua mala e em quinze minutos éramos um grupo armado de excursão. Claudemir carregava seu martelo e uma pistola 9 mm. Eu levava o 38, a glock, o facão e um rifle que tínhamos pegado na delegacia. Renata com um bastão de beisebol, a shotgun e uma pistola, 9 mm também. Angélica levava um dos cacetetes enquanto Marcos, seu esposo, levava um 38. Verônica levava o outro cacetete e Janaína ficava monitorando o seu Marcos. Patrícia estava com um taco de golfe e um 38 e Alberto levava uma carabina e um facão. Além disso, todos tínhamos mochilas com os víveres que pudéssemos levar. Nas malas de todos, comida, roupas, tudo o que podíamos carregar.

_ Vou sentir falta de comer hamburger todo dia, disse Marcos.

_ Que nada... já estava ficando gordo, viu? Vai ser bom mudar a dieta, respondeu Angélica.

Eu e Claudemir carregávamos a maca de seu Marcos enquanto os outros iam a nossa volta. A ordem era matar qualquer desmorto que aparecesse, tirar do caminho qualquer obstáculo. Não tínhamos tempo a perder. Se não chegássemos à saída o mais rápido possível o andar estaria infestado e nós não sairíamos dali.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 22

Na porta do provador, começamos o massacre. Eu cortava o que podia com o facão. Puxei uma mulher para trás pelos cabelos e golpeei no pescoço, cortando até a metade. no segundo golpe a cabeça dela ficou na minha mão e a joguei para o lado.

Claudemir batia com o martelo na cabeça de um homem negro de cabelos raspados. Dava para ver o crânio do homem esfacelando enquanto a ferramenta afundava cada vez mais, até que o homem parou, caiu de joelhos e ficou por lá.

Marcos e Alberto tentavam ajudar de alguma forma, mas os tacos eram muito grandes para o espaço reduzido em que estávamos. Marcos gritou para Patrícia.

_ Patrícia, você foi mordida?

_ Não. Me ajuda! Socorro!

Ela estava desesperada, e nós também.

_ Sai todo mundo da frente! Patrícia, se encolhe o máximo que puder!

Era Renata gritando. Nos afastamos e ela atirou. Três tiros de escopeta foram o bastante para derrubar oito desmortos, que se juntaram a outros tantos no chão. A escopeta tinha uma grande vantagem. Apesar de não matar os zumbis, é uma arma que os derruba, por conta do impacto que as balas oferecem. Com os três tiros os zumbis caíram e estavam expostos. Prato cheio. Continuamos a matança até eliminar o último e abrir a porta do provador. Patrícia vestia um macacão ensanguentado. O corpo todo estava coberto de sangue e pedaços de carne podre. Mas nenhuma mordida.

Ela saiu em silêncio do provador. A roupa, coberta de sangue velho, os cabelos perfeitamente desalinhados. Renata se aproximou e a abraçou. Foi o bastante para a menina começar a chorar.

_ Nós não temos tempo. Você precisa se trocar e nós precisamos arrumar tudo para ir embora. Você consegue?

Ela fez que sim com a cabeça enquanto limpava as lágrimas com as mangas. Olhou-nos com o rosto sujo do sangue que havia na manga do macacão.

_ Eu não vou mais chorar por estas porcarias. Não vou mais. Nunca mais.

Saiu enquanto eu, Claudemir, Marcos e Alberto tentávamos conter a subida de mais desmortos pela escada rolante. Ficar não era mais uma opção.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 21

_ Ernesto, precisamos de você na praça de alimentação.

Fomos correndo para a praça de alimentação. No vão livre das escadas rolantes, que haviamos destruído, uma surpresa. Aleatoriamente os zumbis haviam formado uma pilha e amontoavam-se uns sobre os outros. Os que estavam mais altos começavam a tocar os dedos podres no beiral do piso.

_ Quando foi que começou?

_ Não sabemos. O Claudemir que viu isso agora há pouco.

_ Se eles estão fazendo aqui, isso quer dizer que podem estar fazendo em outros lugares também.

Enquanto eu falava isso, um grito ecoou de um dos corredores. Era Patrícia, que devia estar em alguma loja experimentando roupas.

Corremos armados na direção do grito. Quando chegamos em uma grande loja de departamentos vimos os primeiros desmortos saindo de lá de dentro. Puxei o facão. Nos corredores havia espaço o bastante para conseguirmos mata-los sem gastar balas. Claudemir usava um martelo e Alberto e Marcos, que viera correndo e chegara antes, os bastões de beisebol.

Haviam uns quinze zumbis entre nós e a multidão de frente para o provador. Eles forçavam as paredes de madeira enquanto Patricia gritava de terror lá dentro. Abri caminho entre um homem vestido com um terno finíssimo e uma menina de doze anos que não tinha metade do rosto e tinha parte do cérebro exposto. a massa era amarelada, com pontos pretos, como que atrofiados. Nada parecido com o aspecto que eu imaginava ter um cérebro saudável, que eu via rosado nas fotos. Desci o facão sobre a cabeça do homem enquanto Claudemir cravava o martelo naquele pedaço de massa exposta da menininha. corri para os provadores quando senti mãos pegando meu pé e me derrubando.

Era um homem gordo de meia idade e meio corpo. de entre suas costelas surgiam seus órgãos internos e ele tentava se esticar para me pegar. Eu tentava me desvincilhar dele e o chutei com a bota, amassando os ossos de sua face com tanta força que chegou no cérebro. Eu o havia matado aos chutes e, para terminar, levantei o pé e desci o calcanhar com força sobre a nuca.

Ainda sentado vi Marcos lutando contra uma mulher que tentava lhe morder. Ela não tinha os olhos. Com o facão ainda na mão, golpeei na canela dela, quebrando um dos ossos e desequilibrando-a. Ela caiu sobre uma arara e Marcos a golpeou com força. os miolos se espalharam sobre as camisas masculinas.

_ Fico te devendo mais essa Ernesto.

Ele me levantou a tempo de eu ver os desmortos subindo pela escada rolante da loja, que tinha dois andares. Dentro do provador Patrícia ainda agonizava. Não sabíamos se ela havia sido mordida ou não, mas tínhamos que tentar salva-la. Cada vez mais haveriam mais desmortos chegando ao andar em que estávamos. Eles haviam conseguido escalar uma pilha de zumbis acabaram chegando até nós. Para eles era hora do banquete, para mim, hora de ir embora dali.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 20

Eu precisava me preocupar com preparativos. Enquanto os desmortos tomavam todo o térreo, eu e Renata ainda procurávamos uma forma de chegar à subestação de energia de Tambauzinho. Atravessar aquele pedaço da cidade ia demorar mais que o esperado, então, decidimos que teríamos dois pontos de apoio no caminho. Em uma situação normal a distância entre o Retão de Manaíra e a avenida Epitácio Pessoa era coberta por pedestres em cerca de vinte minutos. Com todos os carros e zumbis no meio do caminho, e com um grupo de dez pessoas, sendo um homem hospitalizado, este tempo seria muito maior.

Foi Renata quem sugeriu que tivéssemos pontos de apoio, e fôssemos levando o grupo aos poucos para o ponto final.

_ Assim conseguimos tempo e mobilidade. A transferência toda pode levar de um a dois dias.

Concordei com a ideia. Era realmente muito boa. Assim como Renata. Policial há muito tempo, sabia lidar com as pessoas. Líder nata, permiti que assumisse um papel preponderante dentro do grupo, que já me considerava seu líder natural. Renata era uma pessoa estratégica, pensava passos à frente, sabia o que precisávamos e passava segurança para o grupo.

Eu e ela estudávamos tudo o que podíamos sobre zumbis e formas de sobrevivência. Conversávamos enquanto eu lia Max Brooks, e seu "Guia de Sobrevivência aos Zumbis", com dicas de como enfrentar os desmortos. Por causa das dicas de Brooks eu havia trocado minha arma primária da pistola para um rifle, muito mais fácil de apontar e atirar. Renata lia "Apocalipse Z", de Manel Loureiro, espanhol que havia lançado um blog onde contava uma possível infestação zumbi de dimensões mundiais.

_ Quando a coisa começou, foi mais ou menos como ele fala aqui. Ninguém queria admitir que enfrentávamos um problema maior do que eles mostravam. Havia muitos boatos, rumores. Ninguém sabia de onde haviam vindo os desmortos. Na delegacia as ordens começaram a mudar muito rápido e um dia recebemos um relatório onde davam ordens para que andássemos em duplas, sempre, com armas engatilhadas e que atirássemos na cabeça de qualquer pessoa que apresentasse comportamento estranho.

_ Quanto tempo demorou para a infestação chegar a João Pessoa efetivamente?

_ A coisa começou na Ásia. Na China, na verdade. A porta de entrada no Brasil foram os portos de Santos e Suape, em Pernambuco, por isso o Nordeste caiu primeiro. Santos eles isolaram durante um tempo. Alguns dias.

_ Eu tinha um amigo de lá de perto que sobreviveu. Até dias atrás.

_ Pois é. Algumas pessoas conseguiram sair, mas outras não. A Força Aérea destruiu as pontes de acesso da cidade.

_ Mas no Recife não conseguiram fazer isso?

_ Não. O Porto de Suape foi tomado rápido pelos zumbis. Quando a gente viu, um caos, um pânico muito grandes. A praga se alastrou rápido e alcançou as grandes capitais por causa dos motoristas de caminhão que haviam chegado a Suape e achavam que a mordida que haviam levado era coisa de gente louca e que não havia nada demais. Erro. E ninguém nos falava o que estava acontecendo. Comecei a achar estranho quando recebemos este relatório mandando atirar na cabeça de qualquer pessoa que apresentasse comportamento zumbi.

Renata tinha os olhos muito abertos. Aquela história a incomodava. Foleou o livro.

_ Engraçado imaginar que este cara pode estar neste momento postando da Espanha, sendo um sobrevivente.

_ Ele estava em Nova Iorque quando a coisa aconteceu. Eu acompanho o blog dele por aqui. É bem diferente quando a coisa é real e está à nossa volta. As pessoas começam a pensar de forma diferente sobre o mundo. Ele está mais desesperado, preso em um edifício em Manhatan. Semana passada eles estavam ficando sem alimento.

_ Você acha que vai dar certo irmos para lá?

_ Para a estação? Claro. Aqui é que não vamos durar muito. Não temos condições de crescer, plantar, nos proteger. Já tem uns seiscentos zumbis lá em baixo e nós temos apenas uma saída possível. Não podemos manter o perímetro aqui.

_ Você serviu no exército? Você sempre usa termos militares.

_ Fui capelão no Haiti durante a ocupação das forças de paz da ONU, logo que me formei na faculdade de teologia. Ficava com os soldados, mas nunca peguei em uma arma na vida.

_ Até agora.

_ Até agora.

_ Nunca havia matado alguém?

_ Até agora.

_ Como você se sente?

_ Neste mundo? Não me sinto um assassino. Acho que ajudei o Lúcio de alguma forma. Mas pesa te-lo matado. Sempre usei minhas mãos para trazer vida, de alguma forma. Nunca para tira-la.

_ A primeira vez que eu matei acabei ficando assim também. Ele era um assassino treinado. Mas você entende que faz parte do seu dever, faz parte do seu trabalho fazer isso. Nós temos que fazer o que temos que fazer, feliz ou infelizmente. Nenhum de nós está preparado para tirar a vida do outro.

_ Quero crer que Deus vai entender o que eu fiz.

_ Você tem o direito de ter dúvidas, Ernesto. Só não tem o direito de deixar que eles as vejam.

_ E você? Você pode enxergar minhas dúvidas? Meus defeitos?

_ Eu olho para você e vejo além desses defeitos e dessas dúvidas. Você é um grande líder. Está lidando com um grande problema e está lidando bem. Agora, chega de ficar achando que não é bom o bastante para isso. Você é sim.

_ Obrigado, Renata. Mas se eu não fizer esta cara, que charme vai me restar?

_ Acredite em você. Não existe melhor charme do que autoconfiança.

Ela me olhava com aqueles longos olhos castanhos escondidos atrás dos óculos. Não conseguia tirar os olhos dos olhos dela. Lembrei dos olhos de ressaca de Lenora, mas logo os apaguei e vi que, diferente do fluído misterioso que eu encontrava nos olhos de minha ex-esposa, era no fluído ainda mais misterioso dos olhos de Renata em que eu queria mergulhar agora. Me aproximei dela e toquei seu rosto com a mão. Ela não tirava os olhos de mim.

Alberto chegou correndo nesta hora.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 19

O térreo estava tomado por zumbis. Os grunhidos e gemidos que emitiam ecoavam pelos corredores vazios do primeiro andar e chegavam à praça de alimentação e às lojas onde estávamos abrigados. Eu não enxergava alternativas além de nossa saída dali. A presença deles, seu cheiro, impregnando a comida, o som de suas vozes se sobrepondo à música de elevador que tocava, tudo ia tirando-nos do sério. Havia apenas dois dias que eles haviam invadido o térreo. Já havíamos limpado os corpos e tentado diminuir a sujeira nos corredores, mas tudo continuava igual e o número de zumbis ainda continuava crescendo.

A primeira coisa que fizemos foi mudar da praça de alimentação para o andar dos cinemas. as portas de acesso ao cinema eram mais reforçadas e havia mais rotas de fuga que os desmortos ainda não haviam alcançado. Nos fundos do cinema, uma saída de incêndio dava pleno acesso à cidade. saíamos de frente para o viaduto da BR, virando à esquerda e correndo cerca de cinquenta metros já estávamos em ruas limpas de zumbis, onde poderíamos andar calmamente.

No primeiro piso, Marcos olhava por um parapeito quando cheguei ao seu lado.

_ Da última vez que contei eram duzentos e trinta.

_ Alguém que você conhecia?

_ Isso é assustador, não é? Pensar que muita gente que eu conheço, inclusive meus pais, meu irmão e minha filha se transformaram nisso... estou com medo, Ernesto.

_ Todos estamos, Marcos. Eu também não quero ir lá fora, mas temos que ir, saber o que está acontecendo, encontrar um lugar mais seguro para nós. A comida é farta aqui, mas vai chegar uma hora que a situação vai mudar e nós vamos precisar encontrar alternativas.

_ Mas isso ainda vai demorar.

_ Mas aquilo ali em baixo não. E por mais difícil que seja para você encarar estes monstros, preciso que esteja menos vacilante do que estava ontem.

Marcos abaixou a cabeça. Ele sabia do que eu estava falando.

_ Desculpe, Ernesto. Não vai acontecer de novo.

_ Espero que não. Todos precisamos de todos aqui. Ninguém é melhor e muito menos pior do que ninguém. Não podemos nos dar o luxo de perdermos as vidas neste lugar. E para garantir minha retaguarda eu preciso de você e de Angélica. E ela tem que entender, Marcos, que não temos alternativa a não ser nos apoiarmos uns nos outros.

Ele olhou para os desmortos e riu.

_ Eu vi meu chefe sendo comido por estes malditos. Só havia duas coisas em que eu pensava no início desta merda toda. A primeira, minha mulher e minha filha. Precisava ve-las, saber que estavam bem. A outra coisa era que eu queria ver aquele porco sendo comido pelos malditos zumbis. Ele era um monstro, e eu vi os zumbis comendo ele, na sala dele, em cima daqueles malditos papéis da receita federal que ele nos obrigava a adulterar. Não vou mentir, Ernesto, eu senti um prazer muito grande de ver aquilo, e saber que ele estava consciente de que eu estava vendo.

Fiquei calado ao lado de Marcos. Aquilo era doentio, mas eu não podia censura-lo. Não tinha o direito de critica-lo. Vivíamos em um mundo novo, afinal de contas, com novas regras e leis. Pensei sobre ter matado Lúcio, ter tirado a vida dele e pensei na pergunta que ele havia me feito. “Você não acredita mais em milagres?” A resposta era um sonoro “não” dentro da minha cabeça, mas em meu coração, ao contrário, ainda queria acreditar.

_ Não conta nada para a Angélica, por favor. Não quero que ela saiba deste meu lado... psicopático.

_ fique tranquilo. Isso morre comigo. Me diga uma coisa... você se sente mal por ter ficado feliz ao ver seu patrão morrer?

Ele pensou.

_ Não. Ninguém merece este destino triste. Mas se tinha alguém que eu não queria neste grupo era ele. Egoísta, só traria problemas para nosso grupo.

_ E sua filha? Como foi?

_ Não fala sobre isso com a Angélica, também... a Julia aconteceu logo no começo da praga, mas ela escondeu da gente. A gente não conseguia se comunicar com ela, e ela ficava trancada naquele quarto. Só notamos quando ela já estava desacordada. Não tive oportunidade de dar tchau prá minha bebê. eu... eu...

Ele desatou a chorar e tudo o que eu podia fazer era consola-lo. Abracei Marcos enquanto ele chorava. Mais que pena daquele homem, sentia uma profunda preocupação com sua alma e com suas mãos, que já carregavam pesos demais.