quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Livro 3 - Capítulo 20

Eu precisava me preocupar com preparativos. Enquanto os desmortos tomavam todo o térreo, eu e Renata ainda procurávamos uma forma de chegar à subestação de energia de Tambauzinho. Atravessar aquele pedaço da cidade ia demorar mais que o esperado, então, decidimos que teríamos dois pontos de apoio no caminho. Em uma situação normal a distância entre o Retão de Manaíra e a avenida Epitácio Pessoa era coberta por pedestres em cerca de vinte minutos. Com todos os carros e zumbis no meio do caminho, e com um grupo de dez pessoas, sendo um homem hospitalizado, este tempo seria muito maior.

Foi Renata quem sugeriu que tivéssemos pontos de apoio, e fôssemos levando o grupo aos poucos para o ponto final.

_ Assim conseguimos tempo e mobilidade. A transferência toda pode levar de um a dois dias.

Concordei com a ideia. Era realmente muito boa. Assim como Renata. Policial há muito tempo, sabia lidar com as pessoas. Líder nata, permiti que assumisse um papel preponderante dentro do grupo, que já me considerava seu líder natural. Renata era uma pessoa estratégica, pensava passos à frente, sabia o que precisávamos e passava segurança para o grupo.

Eu e ela estudávamos tudo o que podíamos sobre zumbis e formas de sobrevivência. Conversávamos enquanto eu lia Max Brooks, e seu "Guia de Sobrevivência aos Zumbis", com dicas de como enfrentar os desmortos. Por causa das dicas de Brooks eu havia trocado minha arma primária da pistola para um rifle, muito mais fácil de apontar e atirar. Renata lia "Apocalipse Z", de Manel Loureiro, espanhol que havia lançado um blog onde contava uma possível infestação zumbi de dimensões mundiais.

_ Quando a coisa começou, foi mais ou menos como ele fala aqui. Ninguém queria admitir que enfrentávamos um problema maior do que eles mostravam. Havia muitos boatos, rumores. Ninguém sabia de onde haviam vindo os desmortos. Na delegacia as ordens começaram a mudar muito rápido e um dia recebemos um relatório onde davam ordens para que andássemos em duplas, sempre, com armas engatilhadas e que atirássemos na cabeça de qualquer pessoa que apresentasse comportamento estranho.

_ Quanto tempo demorou para a infestação chegar a João Pessoa efetivamente?

_ A coisa começou na Ásia. Na China, na verdade. A porta de entrada no Brasil foram os portos de Santos e Suape, em Pernambuco, por isso o Nordeste caiu primeiro. Santos eles isolaram durante um tempo. Alguns dias.

_ Eu tinha um amigo de lá de perto que sobreviveu. Até dias atrás.

_ Pois é. Algumas pessoas conseguiram sair, mas outras não. A Força Aérea destruiu as pontes de acesso da cidade.

_ Mas no Recife não conseguiram fazer isso?

_ Não. O Porto de Suape foi tomado rápido pelos zumbis. Quando a gente viu, um caos, um pânico muito grandes. A praga se alastrou rápido e alcançou as grandes capitais por causa dos motoristas de caminhão que haviam chegado a Suape e achavam que a mordida que haviam levado era coisa de gente louca e que não havia nada demais. Erro. E ninguém nos falava o que estava acontecendo. Comecei a achar estranho quando recebemos este relatório mandando atirar na cabeça de qualquer pessoa que apresentasse comportamento zumbi.

Renata tinha os olhos muito abertos. Aquela história a incomodava. Foleou o livro.

_ Engraçado imaginar que este cara pode estar neste momento postando da Espanha, sendo um sobrevivente.

_ Ele estava em Nova Iorque quando a coisa aconteceu. Eu acompanho o blog dele por aqui. É bem diferente quando a coisa é real e está à nossa volta. As pessoas começam a pensar de forma diferente sobre o mundo. Ele está mais desesperado, preso em um edifício em Manhatan. Semana passada eles estavam ficando sem alimento.

_ Você acha que vai dar certo irmos para lá?

_ Para a estação? Claro. Aqui é que não vamos durar muito. Não temos condições de crescer, plantar, nos proteger. Já tem uns seiscentos zumbis lá em baixo e nós temos apenas uma saída possível. Não podemos manter o perímetro aqui.

_ Você serviu no exército? Você sempre usa termos militares.

_ Fui capelão no Haiti durante a ocupação das forças de paz da ONU, logo que me formei na faculdade de teologia. Ficava com os soldados, mas nunca peguei em uma arma na vida.

_ Até agora.

_ Até agora.

_ Nunca havia matado alguém?

_ Até agora.

_ Como você se sente?

_ Neste mundo? Não me sinto um assassino. Acho que ajudei o Lúcio de alguma forma. Mas pesa te-lo matado. Sempre usei minhas mãos para trazer vida, de alguma forma. Nunca para tira-la.

_ A primeira vez que eu matei acabei ficando assim também. Ele era um assassino treinado. Mas você entende que faz parte do seu dever, faz parte do seu trabalho fazer isso. Nós temos que fazer o que temos que fazer, feliz ou infelizmente. Nenhum de nós está preparado para tirar a vida do outro.

_ Quero crer que Deus vai entender o que eu fiz.

_ Você tem o direito de ter dúvidas, Ernesto. Só não tem o direito de deixar que eles as vejam.

_ E você? Você pode enxergar minhas dúvidas? Meus defeitos?

_ Eu olho para você e vejo além desses defeitos e dessas dúvidas. Você é um grande líder. Está lidando com um grande problema e está lidando bem. Agora, chega de ficar achando que não é bom o bastante para isso. Você é sim.

_ Obrigado, Renata. Mas se eu não fizer esta cara, que charme vai me restar?

_ Acredite em você. Não existe melhor charme do que autoconfiança.

Ela me olhava com aqueles longos olhos castanhos escondidos atrás dos óculos. Não conseguia tirar os olhos dos olhos dela. Lembrei dos olhos de ressaca de Lenora, mas logo os apaguei e vi que, diferente do fluído misterioso que eu encontrava nos olhos de minha ex-esposa, era no fluído ainda mais misterioso dos olhos de Renata em que eu queria mergulhar agora. Me aproximei dela e toquei seu rosto com a mão. Ela não tirava os olhos de mim.

Alberto chegou correndo nesta hora.

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