Antes que eu chegasse no local da batalha, um dos zumbis
chegou por trás do grupo e atacou a maca que estava no chão, mordendo o pescoço
de Marcos. Janaína estava muito entretida com uma menina zumbi que tentava
morde-la que mal ouviu quando o instrumento que monitorava o coração começou a
acelerar, dando sinais sonoros em intervalos cada vez menores de tempo. Quando
virou-se, três zumbis devoravam a carne de Marcos, mordendo seu torax, seu
pescoço e seus braços. Ela gritou e voltou-se para o corpo caído, batendo nos
três zumbis, dois homens e uma mulher. Eu estava a cerca de 40 metros do
conflito, atirando com cuidado com a carabina, não me permitindo perder um tiro
sequer, lembrando do treinamento do coronel Pacheco para o Haiti. É. Eu menti para Renata sobre o treinamento militar. Eu tinha, sim, dado alguns tiros em minha vida, Sabia manusear uma arma.
_ Busque sentir seu coração. Atire entre as batidas do seu
coração. Quanto mais seu coração estiver sob controle, mais fácil será atirar e
acertar. Mais eficiência se consegue com autocontrole, dizia o velho coronel.
Autocontrole era algo fundamental para a sobrevida em um
mundo de desmortos. Assim como era importante ter autocontrole com as finanças
pessoais, era importante ter autocontrole sobre as balas naquele momento. Por
mais munição que tivéssemos, e tínhamos bastante, ainda precisávamos encarar um
longo caminho até o local que havíamos deixado limpo.
_Autocontrole é o caralho.
Coloquei a carabina nas costas, puxei o facão e corri na
direção deles gritando.
Eu precisava de uma descarga de violência gratuita plena,
por isso, deixei as mochilas no chão e segurei o facão. Era um modelo do
exército, com lâmina reta de 45 centímetros de comprimento, de aço resistente.
Eu havia afiado na noite anterior, antes de os zumbis conseguirem entrar no
segundo andar do shopping. Ele já havia devolvido diversas almas para o inferno
e ainda me acompanharia até o final da jornada, quando, cercado, e com pouca munição,
posso recorrer a ele para sobreviver.
Apesar da quantidade alta de zumbis, vi que a situação
estava sob controle e comecei a cortar pelo prazer. Fui, durante alguns
minutos, um psicopata, arrancando braços e quebrando espinhas de desmortos,
apenas para ve-los caídos e sem condições de conseguir nos pegar. Matar era um
detalhe, eu queria ver sangue preto de podre se espalhando por todos os cantos.
Me dei o prazer da violência. Matei minha sede de
agressividade, fiz coisas inomináveis apenas por fazer. Não minto que aquilo me
deu um raro e contínuo prazer. Mas os alvos estavam mortos, então não sentia
culpa por tanto. Queria vingar Patrícia, vingar Lúcio, vingar Verônica, vingar
Lenora, Augusto, cada um dos que eu vi morrendo. Cada um dos que não poderia
mais aproveitar as coisas pequenas do mundo.
Abri a barriga de uma senhora e peguei a ponta de suas
tripas. Arrastei até alcançar dois zumbis, que eu amarrei com os intestinos da
mulher antes de matar. Ela se arrastava na direção do corpo de Marcos, mas esmaguei
seu crânio com minha bota de alpinismo, com biqueira de aço que eu tive o
prazer de enfiar nas costelas de outro zumbi que veio na minha direção. O facão
cortou sua cabeça na perpendicular, separando o cérebro e terminando o corte na
altura do lóbulo da orelha direita do zumbi. Foram dez mortes minhas só naquela
explosão. Eu era apenas fúria e violência, e queria sentir que podia controlar
aquilo, mesmo na situação mais terrível.
Os outros sobreviventes ficaram me olhando enquanto eu
cometia aquela atrocidade. Coberto de sangue e podridão, eu não queria falar
nada. Voltei, peguei as mochilas do chão e caminhei na direção deles. Renata,
assustada, estava de queixo caído.
_ Patrícia está morta.
Para eles esta explicação foi o bastante.
Caminhei na direção de Janaina que chorava ao lado do corpo
semidevorado de Marcos. Ele tinha os olhos abertos e uma expressão de terror e
dor impregnada neles. Coloquei a mão no ombro da enfermeira e sobre a cabeça do
moribundo. O sangue vertia das feridas. Eu sabia que Marcos sentia todas as
dores, mas não podia se expressar.
_ Filha, há momentos em que temos que tomar decisões
drásticas. Abandonar pessoas no caminho é uma destas decisões. Você consegue
isso?
Ela fez que sim com a cabeça.
_ Não se culpe. Você fez o seu melhor. Cuidou dele por
tanto tempo, entregou sua vida a ele por tanto, passou por tanta coisa para que
ele pudesse estar seguro que agora que eu sei que ele vai reconhecer e entender
sua decisão. É o melhor para ele.
Entreguei o 38 na mão de Janaína e me afastei para compor o
perímetro junto de Renata Claudemir e Alberto. De costas para a cena, apenas
ouvi o tiro e o choro da enfermeira que crescera. Ela fez o que tinha que ser
feito. Precisávamos seguir em frente. Sem olhar para trás e nem pensar no que aconteceu.
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